terça-feira, 6 de março de 2018

A LITERATURA VIVA DE CAROL SCHMID


Carol Schmid: atriz, escritora e produtora cultural. Criadora do Sarau das Minas. Nasceu em Campinas (SP). Em 1998 (aos 9 anos de idade) se mudou para Goiânia (GO), local que presenciou suas primeiras produções artísticas. Abaixo alguns de seus textos e  poemas. Em breve vai sair uma entrevista com ela no Fetozine ( fetozine.blogspot.com ).

Praia do Futuro

Sete dias a separavam dos 30. Decidiu viajar sozinha pela primeira vez. Foi à praia. Encarou o mar. Queria refletir sobre temas importantes, escrever textos inteligentes. Ato reflexo, procurou o celular na bolsa. Lembrou que o deixara propositalmente no hotel. Conhecia seus vícios.

Caminhou lentamente pela praia, arrependendo-se de algumas escolhas. Sua vida se resumia a um carro desgovernado com um piloto olhando apenas no retrovisor. A culpa era seu inferno particular. 

Concentrou-se em sentir. O sol esquentava sua pele e a água salgada borbulhava entre seus dedos. Despida de si, entrou no mar e começou a sentir uma loucura estranha. Como se todos os seus medos não fizessem o menor sentido, tampouco seus planos.

Viu uma criança com camiseta de manga comprida, rosto branco de protetor solar e boias nos braços. Ela ria euforicamente enquanto atirava punhados de areia molhada no ar e corria em círculos, sem rumo. O meio era mais importante que qualquer fim.

Não demorou para que a felicidade infantil fosse interrompida pela lasca de concha quebrada que se escondia na areia fofa. Chorou alto. Uma mulher se aproximou correndo, colocou uma toalha estendida na areia e a criança sobre a toalha. Lavou o ferimento com uma garrafa de água mineral, mostrando para a pequena que não havia necessidade de pânico.

Ambas permaneceram sentadas na toalha. A lasca de concha quebrada virou pá e construíram castelos na areia. O sol começou a se pôr. A mulher pegou a criança no colo e a levou para o asfalto. O tempo de praia havia acabado.  

Mergulhou novamente. Como um caminhar infantil rumo a lugar nenhum, talvez o grande sentido da vida seja aceitar que as coisas podem não ter sentido. 

Prendeu a respiração. Se a expulsassem do mundo, naquele instante, estaria disposta a ir.

Recordar é viver?

Era 2013 e eu estava no supermercado com minha avó. Ela pegou um pacote de linguiça, disse "vou levar para o seu avô" e o colocou no carrinho que eu empurrava. Meu avô falecera em 2010, ela não se lembrava e eu não consegui contar a "novidade". Chegando em casa ela já teria se esquecido até mesmo do pacote de linguiça.

O Alzheimer é cruel. Eu acompanhei o progresso assustador da falência da memória de minha avó e, após sua morte, afirmei que preferia morrer a ter a mesma doença. Partia do pressuposto de que não vale à pena viver sem lembrar do que se viveu. Um museu necessário, uma vida baseada em passado acumulado.

Já me falaram que o coração é apenas uma bomba de sangue e que todos os sentimentos que lhe imputamos são, na verdade, frutos da nossa mente. Não acredito nisso. Infinitos sentimentos me tomam todos os dias sem que eu possa explicá-los racionalmente. Eles vêm do coração. Vêm agora e sempre virão. São presente e futuro, mente é passado.

Hoje, repassando os últimos dias com a minha avó, percebo que, sim, ela não se lembrava do que tinha almoçado no dia anterior, e nem qual filme assistira depois do jantar, mas ela ainda se divertia com as gracinhas dos bisnetos, ainda gostava de passear, ainda tinha seus filmes e comidas preferidos. Seu coração nunca deixou de bater enquanto a doença afetava sua mente. Ela tinha presente e futuro, havia vida para ser vivida.

Olhando um dos álbuns de fotos da família, vi que meu avô escrevera atrás da capa "recordar é viver?". Hoje, com saudade dos dois, respondo: "nem sempre, vô, nem sempre".

Banho frio

Já estava saindo de casa quando o telefone tocou. De imediato, olhei o celular. Nenhuma mensagem ou ligação perdida. O que seria tão importante para se ter o telefone fixo como primeira opção?

Talvez uma tia velha ligasse informando a morte de um parente distante. Repassei mentalmente as obrigações financeiras que havia assumido naquele ano, poderia ser cobrança. Ou quem sabe um presidiário estivesse na linha, simulando o sequestro de um ente querido para extorquir o dinheiro que não tenho. Ente querido... Sorri de canto de boca, não tinha graça gargalhar sozinho. Pensei no meu pai. Depois de tudo que havíamos dito um ao outro, seria a velhice capaz de dissolver o orgulho?

Não mais que de repente, a água gelada de um chuveiro imaginário despencou sobre mim. Repleto de espasmos cardíacos, contraí os ombros e desejei que o telefone parasse em cada passo a ele direcionado.   

Por último, como sempre e pra sempre, o pensamento nela. Afinal de outra forma não haveria de ser as epifanias mentais dos apaixonados.

Voltei para fechar a porta, sentei-me no sofá. A conversa seria longa. Estava pronto para dizer não necessariamente o que precisasse ser dito, mas o que quisesse ser ouvido. A tal receita do perdão.

Atendi o telefone buscando a entonação perfeita para dialogar novamente com a felicidade. Era engano. 


Vai pro inferno

Ontem recebi uma carta do diabo.

No check list das
incongruências
desonrei
mãe e pai
matei
sonhos e vontades
sobrevivi
à base de falsos testemunhos
desejei
a mulher
não apenas do próximo
pequei
contra a castidade
e fiz do sexo meu
fictício
prazer imediato

Com o julgamento
em mãos
sigo
mentindo a liberdade
de meu corpo
vazio
enquanto minha alma
jaz
imóvel
na vala coletiva
dos covardes

Em minha defesa
nada a declarar.

Jogando futebol em uma sala cheia de cristais
(da morte, seus sentimentos e algumas reflexões)

A primeira morte da qual me recordo foi de uma prima de meu pai. Acidente de carro. Deixou quatro filhas, mas eu tinha um carinho especial por uma delas. Ela era mais velha do que eu, mas não velha o suficiente para deixar de brincar comigo. E eu gostava disso, eu era grata. Quando soube que a mãe dela havia morrido, pensei em falar alguma coisa. Treinei palavras, simulei um abraço. Eu não podia ir até ela. No auge dos 7 anos, tinha de esperar um encontro casual, programado por familiares. Demorou. Ela já não chorava e estava na piscina, com mais algumas pessoas. Eu a olhava e as palavras sumiam. Não conseguia parar de pensar que ela não tinha mais uma mãe, e eu tinha. E que eu um dia poderia deixar de ter. Assim como muita gente, assim como muitas crianças. Aquilo me apavorou. Eu não entrei na piscina naquele dia, eu não disse nada a ela.

Estávamos na chácara de um tio. Não me recordo se natal ou casamento, mas jamais me esquecerei da expressão dela. Minha avó soube da morte de sua mãe na minha frente. As costas dela se curvaram e seus olhos sumiram entre as peles das pálpebras comprimidas. Esta não pode ser a minha avó, pensei, eu nunca a tinha visto chorar. Levaram-na para o quarto, não tive coragem de entrar.

Vivi por um bom tempo como imortal. E imortais eram os que conviviam comigo. Até que ele se foi. Ele estava internado já há algumas semanas. O som do telefone tocando após a meia noite. Eu não precisava atender para saber. Mas eu atendi. E eu tive de acordar o meu pai para dizer que o pai dele havia morrido. Não sei quais palavras usei, e isso nem importava. Lembro do rosto dele, as pálpebras pareciam as da sua mãe, mas ainda sonolentas. O homem deitado no caixão não parecia o meu avô. Talvez por conta da medicação usada na UTI, ou talvez porque eu não queria que fosse ele. Não podia ser ele. E assim mantive a lembrança de meu avô ainda vivo, como forma de diminuir a dor – até então inédita – de perder alguém que a convivência diária, mesmo que às vezes sem grandes acontecimentos e no piloto automático, tornara de uma essencialidade – imperceptível aos olhos desatentos – que a  ausência revelou.  

Pity. Ah, a Pity! Ela chegou nos meus 9 anos como moeda de troca pela mudança para Goiânia e, sem qualquer dificuldade, conquistou em mim um dos amores mais bonitos que já vivi. Não foi fácil aceitar a ida dela, não foi fácil aceitar aquele espaço vazio na minha cama. 

Estava começando no meu primeiro emprego. Meu chefe iria fazer uma cirurgia no dia seguinte e me explicava um novo trabalho. Gostava de ouvi-lo falar, e gostava mais ainda quando ele pedia minha opinião e me ouvia prestando sincera atenção. Estávamos em uma discussão bastante interessante quando vi uma ligação no meu celular. Não atendi em respeito ao debate intenso, até que o telefone do escritório tocou. Haviam assassinado o pai de um grande amigo. Sem conseguir acreditar, fui até sua casa na pretensão de, com todas as minhas forças, amenizar o que quer que estivesse surgindo dentro dele. Ao vê-lo, com o olhar perdido e sem o brilho tradicional que desde a sétima série me encantava, não encontrei nenhuma palavra melhor que o meu silêncio. Só consegui abraçar. E abracei de verdade. Queria que ele soubesse que eu estava ali, e que era grata por ele ter me deixado estar com ele naquele momento, mesmo que pouco eu pudesse falar ou fazer para ajudá-lo. Não demorou para que outros amigos chegassem em sua casa e em sua vida. Hoje, acompanhando cotidianamente há dois anos sua intensa luta por justiça, eu já não o admiro como admirava na oitava série. Eu o admiro ainda mais. E mesmo que nem sempre perto, ele sabe que estou ainda ali, naquele abraço.   

Segunda-feira de manhã. Minha irmã entra aflita no meu quarto: “a vovó caiu”. Nossos pais estavam viajando, foi preciso tomar algumas decisões. Era véspera de seu aniversário e da chegada de seus irmãos. Talvez o destino já programasse a despedida.

Acontecimentos ainda mais recentes têm me feito pensar na morte diariamente. Não só minha, mas – e principalmente – das pessoas que amo. Não me tornei, contudo, uma pessoa triste.

A perda de alguém querido faz com que coloquemos compulsivamente lembranças em seu lugar, na esperança de que elas, de alguma forma, amenizem a dor da ausência. Isso funciona pouco pra mim, que logo sou tomada pelo “e se”. E se eu não estivesse sempre tão ocupada, e se eu tivesse aproveitado mais o tempo com ele, e se tivesse dito “eu te amo”.

Então eu – que nunca fui muito de falar sentimentos – decidi amar implicitamente. E, embora nem sempre com 100% de sucesso, tenho amado com sorrisos, paciência, conversas despretensiosas. Tenho amado com atenção. Atenção aos detalhes, pois estes pequenos amores serão lembranças um dia.  Assim, acordar um pouco mais cedo para tomar café com o seu pai pode te fazer perceber que ele come maçã diariamente só para poder jogar pedaços para a cachorrinha. Assistir a um filme com sua mãe pode te fazer perceber que ela, deitada no sofá com as pernas para cima, sempre dança com as pontas dos pés no ritmo da trilha sonora. Conversar sobre diversos tipos de hidratação e tintas para cabelo com sua irmã não é impossível e, por vezes, pode até ser bem legal.

Em tempos pós-copa, gosto de encarar a dinâmica da vida como um jogo de futebol numa sala cheia de cristais. Nela, os times de Deus ou do destino realizam lances arriscados – nem sempre belos – quebrando precocemente sonhos e planos. Quantos segredos não revelados, palavras ainda por dizer e ideias não realizadas se escondem nos cemitérios!     

Se a vida é o bem mais democrático já inventado, não se pode dizer o mesmo da morte. Entre elas, um segundo – que não controlamos e não sabemos onde está. A vida é curta. Mas, ao contrário do que isso possa indicar, não precisamos ter pressa.



Um comentário:

  1. Eu acredito que Carol ainda vai mais longe do que imaginamos. Carol é asa aberta a plainar. Junta a força mulher com a poesia e sabe que seu poder ecoa nas mentes de quem a ouve. Algure, saiba que tem aqui um fã e um aliado nas andanças culturais.

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