quinta-feira, 5 de março de 2020

A POESIA ATEMPORAL DO BRASIL BARRETO

Por: Diego El Khouri

Recebi hoje cedo a triste  notícia do falecimento do poeta Brasil Barreto que desencarnou ontem ( 04 de Março, 2020) na cidade do Rio de Janeiro... Um turbilhão de pensamentos atravessam meu olhar. Lembro daquelas noites na Lapa perambulando de bar em bar ao lado desse querido amigo. Conheci Barreto através do bardo cancioneiro irmão aliado Edu Planchêz no ano de 2012. Lembro que mesmo doente sua força e coragem eram admiráveis. Era um aglutinador de pessoas. Desses contatos e experiências surgiam suas poesias. Lembro que dizia não curtir os punks, mas eis que de repente encontro ele numa mesa rodeado de punks e enchendo a cara, e me confessa depois: não gosto de ficar sozinho. Era uma grande figura. Ávido de conhecimento. Gerador de polêmicas. Fez muita coisa interessante nas artes: produziu shows, publicou livros, escreveu artigos... Uma das experiências mais intensas que tive na vida foi quando o poeta me levou para assistir ao um ensaio do grupo Tá na rua do grande teatrólogo Amir Haddad. Duas horas de ensaio visceral. Não vi nada tão intenso quanto aquilo (aquela noite renderia alguns textos interessantes)!!!!!! Certa noite na Lapa Brasil Barreto me presenteou com dois de seus livros: o FARPAS & FAGULHAS (pela editora Giramundo; ano :1996) e ESTIVA (um livro artesanal de 1998 pela Edições Urbana).

O artista morre e a obra fica.



_____ Antes de qualquer coisa é importante entender que Barreto viveu literalmente (e integralmente) a experiência existencial/ experimental de ser poeta. Respeito muito isso!!! _____


nam myoho renge kyo


Abaixo poemas de sua autoria: 

ARAL

Sequer coexisto no cio   
Silencioso dos Deuses...
na dança dos ponteiros
aporto manhãs
onde velas e luares
apagaram-se por si.

Minhas pernas se entrelaçaram
num solitário caminhar,
rumando em ermo espiral.

Insisto nesse desdestino
no meu silêncio tibetano.

Açude de agonia, de servis gritos
engasgados em meus desenganos:

Tudo nos parece verdadeiro
quando os olhos, não se abrem.

Espelhos d'água em nuvens rasas
vigiando suas carcaças 
engolidas em redemoinhos
em tarde de temporal
na imensidão d'um mar de "ARAL".

TEOREMA

As lesmas dissimulam
sua preguiça ao sol,
deixando para trás
um visgo multicolorido,
passeiam na epiderme do vento
como dançarinas no dorso do poema,
no ritmo lento
de quem decifra o teorema.

ALGEMAS

Sob o manto da noite
abri o elo metálico
                das algemas
fugi dos meus algozes
com a chuva nos olhos

corri para o esplendor
                      da manhã
que por pura ironia
nascia de mãos dadas
          com um novo dia.

escorria de minha boca
um largo sorriso
solto em noite de folia
anuncia dessa alforria.

RESSONÂNCIA

Nas artérias dos meus dias
corre um leve desejo profano,
e peço, aquieta-te coração
deixa de tanto desassossego.

Vivo querendo endomingar
as agonizantes segundas-feiras,
e digo, calma meu coração
haja o que houver asserene-se.

Tão logo pela manhã, ouço
os berros, soltos das baias
nos longínquos  matadouros,
urros e mugidos pendurados,
carcaças enganchadas a ferro
não escapam dos cutelos
nem do brilho afiado das lâminas
nas brechas  rosáceas da carne
numa fria sangria desatada
arquitetando silêncio em osso 
calado nos dias da semana,
suprimento diário dos mercados
atraindo os consome-dores.

 INSÔNIA

Parte do meu corpo
insiste em dividir-se,
meu lado esquerdo
completamente adormecido,
aquece minha carcaça.

Enquanto meus tormentos
declinam à minha direita.

Surgem revelações noturnas
de pálidas belezas;
nos remetendo a tempos
de profundidade estrelar,
a pontos luminosos sem idade.

Tropeçamos em noites de insônia
avalanches de eternas indagações,
- Quantos de nós haverão na cidade?



Um comentário:

  1. Belo texto, amigo.
    Esta fotografia dele foi feita por mim na Casa França Brasil em 2017, foi minha pequena homenagem ao poeta.

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