domingo, 24 de junho de 2018

NO CORAÇÃO DE SHIRLEY — UM FILME DE EDYALA YGLESIAS


Por: Diego El Khouri


      Coração.  Órgão muscular oco (preenchido de  identidade, forma  e conteúdo). Coração. Coração vivo. Escarlate. Sistema Circulatório. Veemente força. Bombardeio.1,2,1,2,1,2... 12 centímetros de comprimento. Abarca toda existência. 1000 quilômetros.  9 cm de largura. Infinitas  paisagens. Distância longínqua. 250 gramas de coração. Artérias e veias. Sangue. O espaço. A fronteira. Limites adjacentes. Paredes da memória. O que sente e bate. O que  bate e absorve. Transparece  e renova. 1, 2, 1, 2, 1, 2...
     No coração da cidade. No ventre exposto e cruel da cidade. No olhar febril e alucinante da cidade. As  luzes   translúcidas e vertiginosas da  cidade. Cidade-metrópole. Cidade-vertigem. Cidade-"delirium". No coração da noite. Da noite na cidade. Na  intensa noite da cidade. No coração de alguém. No coração que fala  em alguém. Talvez dela (talvez nosso). De todos  nós. Shirley no centro da cidade. No meio do caos. Crisálidas luzes de neon.  Imergida em caos e espanto. . "No centro do centro do centro do mundo". Do seu mundo. Do nosso  mundo.
     A cidade, o gênero, o corpo. Shirley parada no meio do nada. Estatelada. Espantada. Suando  frio. Olhos arregalados, esbugalhados. Um coração que grita. Solitário como  é a  própria  vida. Uma faca  amolada de dois  gumes.  "Faca na carne". A mulher em posição de risco. Sempre em risco. Máculas de um patriarcado que fere e coibi. Minorias lançadas à esmo. Rasgadas da história (?). E que história! Edyala Yglesias toca fundo, fundo na alma humana nesse documento-denúncia  intitulado "No coração de Shirley", um documentário (de   2002) tocante e totalmente atual — A violência  diária perante as minorias (que na realidade não  tem nada de minoria).
     A cineasta, formada  em  cinema na França, trabalha atualmente em seu  doutorado  na Université de la Sorbonne-Nouvelle Paris o tema Representações do feminino nas cinematografias do Brasil, dos Estados Unidos e da França. Seu trabalho sempre  caminha por entre as fronteiras. Os movimentos  feministas, lgbts, entre outras   correntes são fios  condutores  de sua  busca cultural (que tem como  caráter o social). O universo das zonas de conflitos nada mais é que faces sem máscaras dessa sociedade. Sociedade por vezes cruel e segmentária; caótica. Cada vez mais tecnocrática e individualista. Uma  sociedade que gera  preconceito desde a base. Violências são estimuladas e nem mesmo o  avanço  tecnológico ameniza esse impacto. Muitas vezes  é ele  mesmo  gerador desse  tipo  de violência. O processo de sabotagem do ensino  parte desses princípios: extermínio da população, miséria instalada, estado de instabilidade  e medo. As mãos  manchadas de sangue da omissão estão  cravadas em todos  nós. Não há como ficar indiferente a esse documentário. Em muitos  casos  não precisamos  nem sair de nossos  lares para ver (ou sentir) esse  tipo de violência.  É necessário  transmitir  e explanar tais verdades. Romper tabus. Tabus ainda hoje  intransponíveis. As  rupturas são necessárias e discutir  tais temas se torna  extremamente urgente. A  cineasta Edyala Iglesias,  nesse foco  ideológico,  "transita na zona de inúmeras relações de parentesco  entre as questões urbanas na posse dos espaços em conformidade com a perspectiva de gênero ao problematizar a fixidez com que os estereótipos criados para e sobre a mulher parecem querer reduzi-la ao lugar de mercadoria."
     O discurso  feminista, galgado na denúncia contra o estado opressor, contra a omissão e os preconceitos  são teias  tênues  por onde o curta metragem "No coração de Shirley" perpassa. Documentário-denúncia. Fotografia  escura. Imagens que se escondem na penumbra da noite. A noite sem  regras. Estados de  negligência. O estado e sua "lógica"  segmentária. "É preciso ser absolutamente moderno", já dizia o poeta  francês  Arthur Rimbaud. Estar a frente, refletir as problemáticas sem pudor.  "Ver com olhos  livres". É necessário através  da educação, levantar  tais temas afim do aperfeiçoamento do bom convívio  com a vivência pacífica (e participativa) com  a  coletividade. É  importante  , trabalhar,  por  exemplo, questões de gênero na escola  desde os primórdios da  criança. A cultura do preconceito é algo  histórico,  milenar. Está  enraizada de forma  inconsciente no imaginário das pessoas. É preciso cessar isso. Preconceitos  geram traumas, destroem vidas.  A imagem da personagem  travesti   chamada Dória sendo espancada pela polícia  (aquela  que em tese deveria  nos proteger) apenas  por  não  se encaixar  nos  padrões da  dita  "família  tradicional  brasileira"  é  de cortar o coração. O grito da Dória é o grito  que  ecoa  das minorias.  Grito  de dor e desespero. A  educação se assim quiser se chamar  revolucionária  (como sonhava Paulo Freire) é  necessário  sim debater e  levantar  tais  problemáticas  tanto  no ensino  fundamental quanto  médio  e inclusive também na academia.        
     Corpo, gênero  e preconceito: palavras  chaves dessa  obra cinematográfica. A arte, pelo  viés da liberdade da consciência, dentro  de um processo  educacional, seria  ferramenta eficaz para a transformação do indivíduo  preconceituoso  para um indivíduo  mais  tolerante com  as diferenças. Entender que viver em um mundo rodeado  de diferenças  que é interessante. Tais aprisionamentos são construções  sociais. Precisamos derrubar tais entraves. "No coração  de Shirley" fala de fronteiras   o  tempo  todo. Fronteiras  que criamos e que, pela   cegueira  existencial, nos impede  de  ver e sentir  claramente a vida. Fronteiras que  nos cegam os olhos. Fronteiras  que  nos afastam do outro. Fronteiras que geram ódio. Fronteiras que  geram violência. Voltar enfim,  à  máxima oswaldiana: "ver com olhos livres". 
      Vinte minutos de uma obra que nos tira da zona de  conforto e sacode nosso ser. A fotografia da Mush Emmons    dá  um  toque  dramático  à  obra. Uma  fotografia  de penumbra que  pouco  revela  as faces  dos personagens. A cena de violência acompanhada de músicas  atípicas a esse tipo  de cena (músicas  dançantes,  romantizadas) dá um ar paradoxal ao curta-metragem. O ensino  educacional através de debates, mesas  redondas (não  fazendo uso da ideia de hierarquia), numa conversa  linear  e aberta, usando de artifícios  e linguagens próprias  a cada  fase do indivíduo (criança, adolescente, etc) poderia  contribuir de  forma positiva para a criação  de gerações menos  preconceituosas e violentas. No ensino  de arte exemplos como o movimento  Queer  seria  interessante serem trabalhados em sala de aula. E eu  ouço Dora. Seus gritos  ecoam em minha alma. Seu sangue é nosso sangue. Sua força  é  nossa força. Seu silêncio  é  nosso  silêncio. Somos uno. Não  há  ninguém imune a  coletividade. "Cada bala  de fuzil é  uma lágrima de oxalá". E  que cada  lágrima se transforme em energia, força, respeito  e união.

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