Outubro ou nada
(fragmentos capitais)
Por Pio Vargas
Goiânia,
foi-me dado
o direito de falar contigo,
não pela língua dos jornais
ou dos livros,
mas pela janela deste outubro
que nos ameaça com seus olhos
de futuro
e a dor das flâmulas boiando
nos flamboyants
não direi dos becos
da saudade de beca
dos rios sujos
das margens secas
dos gabinetes
dos shoppings
ou do césio
ardendo nestes dias atônitos
não direi dos pêndulos
dos vincos
de Pedro Ludovico
inscrito no silêncio
dos monumentos
(o eterno da história
é o momento).
II
venho ó Goiânia,
visitar o intestino
de tuas ruas desertas
e abastecer as viagens
do olhar nos andaimes.
venho compor memórias
a partir do teu rosto
tecido pela ventania
vertical das construções.
venho avistar-me,
habitante urbano
de teus enigmas;
reconhecer tuas lendas
plantadas na paisagem
de campinas distantes;
supor a notícia nova
nos anais de teu sangue
abrir-se num sonho
e gritar entre adjetivos
e perfumes: G-o-i-â-n-i-a.
venho desnudar-me
em voláteis retratos
“gastando a sola dos Bandeirantes”
pelo rumo dos sapatos.
venho, sobretudo,
no disfarce pretérito
dos projetos:
Goiânia é alguém se gerando
no abrúpetro caos dos relógios.
III
Goiânia:
a nos dizer
que asas são algemas
pra quem sobe
mas não sabe descer;
a nos informar
a exata dimensão
do peso nos ombros
(dos rombos)
e das cordas do relógio
ruflando nos biombos do peito?
a riscar o lívido
de nossas praças
a medrar os punhos
pra medir toda desgraça;
a tomar-nos por filhos
na mesa de todos bares
e a beber conosco
no reservatório
dos pesares;
a sondar os sinais de trânsito
indo e vindo com a multidão
crescendo entre o verde
e a sombra dos anos.
IV
Goiânia, há muito que dizer,
mas eu fecho os olhos
pra recordar a última voz
de teu silêncio:
“eu vim do milagre
de fluir entre a memória
e o futuro”.
(efêmero é o poema que tente desnudá-la
Goiânia).
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"Pio Vargas (1964–1991) foi um poeta goiano nascido em Iporá e figura marcante da cena literária de Goiânia nos anos 1980. Autor de livros como Janelas do Espontâneo e Anatomia do Gesto, uniu lirismo, ironia e existencialismo com influência da geração beat. Viveu intensamente a experimentação e era, antes de tudo, um leitor voraz. Morreu jovem, aos 26 anos, de forma trágica. O ruim é ver em Goiânia tanto poeta preguiçoso seguidor de Pio, sem compreender a inquietação e o rigor que moviam sua escrita."
Para conhecer mais poemas do Pio:
PIO VARGAS (1964-1991) - O METEORO DA POESIA INSUBMISSA:
http://molholivre.blogspot.com/2011/11/pio-vargas-1964-1991-o-meteoro-da.html
Fotogrado pelo olhar poético de Diego El Khouri, o outsider da galáxia de Parnaso. Goiânia, GO, Brasil. Ano: 2017

Belo registro fotográfico.
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