sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Goiânia, 92 anos...

Outubro ou nada 

(fragmentos capitais)


Por Pio Vargas


Goiânia,

foi-me dado

o direito de falar contigo,

não pela língua dos jornais

ou dos livros,

mas pela janela deste outubro

que nos ameaça com seus olhos

de futuro

e a dor das flâmulas boiando

nos flamboyants

não direi dos becos

da saudade de beca

dos rios sujos

das margens secas

dos gabinetes

dos shoppings

ou do césio

ardendo nestes dias atônitos

não direi dos pêndulos

dos vincos

de Pedro Ludovico

inscrito no silêncio

dos monumentos

(o eterno da história

é o momento).

II

venho ó Goiânia,

visitar o intestino

de tuas ruas desertas

e abastecer as viagens

do olhar nos andaimes.

venho compor memórias

a partir do teu rosto

tecido pela ventania

vertical das construções.

venho avistar-me,

habitante urbano

de teus enigmas;

reconhecer tuas lendas

plantadas na paisagem

de campinas distantes;

supor a notícia nova

nos anais de teu sangue

abrir-se num sonho

e gritar entre adjetivos

e perfumes: G-o-i-â-n-i-a.

venho desnudar-me

em voláteis retratos

“gastando a sola dos Bandeirantes”

pelo rumo dos sapatos.

venho, sobretudo,

no disfarce pretérito

dos projetos:

Goiânia é alguém se gerando

no abrúpetro caos dos relógios.

III

Goiânia:

a nos dizer

que asas são algemas

pra quem sobe

mas não sabe descer;

a nos informar 

a exata dimensão 

do peso nos ombros

(dos rombos)

e das cordas do relógio

ruflando nos biombos do peito?

a riscar o lívido

de nossas praças

a medrar os punhos

pra medir toda desgraça;

a tomar-nos por filhos

na mesa de todos bares

e a beber conosco

no reservatório

dos pesares;

a sondar os sinais de trânsito

indo e vindo com a multidão

crescendo entre o verde

e a sombra dos anos.

IV

Goiânia, há muito que dizer,

mas eu fecho os olhos

pra recordar a última voz

de teu silêncio:

“eu vim do milagre

de fluir entre a memória

e o futuro”.

(efêmero é o poema que tente desnudá-la

Goiânia).



****************


"Pio Vargas (1964–1991) foi um poeta goiano nascido em Iporá e figura marcante da cena literária de Goiânia nos anos 1980. Autor de livros como Janelas do Espontâneo e Anatomia do Gesto, uniu lirismo, ironia e existencialismo com influência da geração beat. Viveu intensamente a experimentação e era, antes de tudo, um leitor voraz. Morreu jovem, aos 26 anos, de forma trágica. O ruim é ver em Goiânia tanto poeta preguiçoso seguidor de Pio, sem compreender a inquietação e o rigor que moviam sua escrita."


Para conhecer mais poemas do Pio:


PIO VARGAS (1964-1991) - O METEORO DA POESIA INSUBMISSA:

http://molholivre.blogspot.com/2011/11/pio-vargas-1964-1991-o-meteoro-da.html



Fotogrado pelo olhar poético  de Diego El Khouri, o outsider da galáxia de Parnaso. Goiânia, GO, Brasil. Ano: 2017

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