Valorize a pessoa pelo que é, independente de sangue, dna ou status social. A família tradicional brasileira é um engôdo. A religião uma farsa. As políticas segregadoras. A arte, mecanismo translúcido de libertação. Meu espírito anarquista levanta. Sou gênio. Ápice monumental de envergadura divina. Sou gênio. Guru underground. Inútil social. Amante ardente. Bom bebedor de vinho. "Poète visionnaire décadent". Antropófago. O "Anjo e o Sedutor". Sou gênio. Dente cravado na história. Estou cravado na história. Memórias de multiversos em versos febris. Na história galgando cada passo resoluto no destino. Meu destino como farol e não coadjuvante. "Metralhadora em estado de graça". Sou gênio. Nam myoho Rengue Kyo nas notas sublimes do Sutra de Lótus. Sem patrão, família ou Estado. Uno com a criação. Eu sou criação. nem pior, nem melhor. Deuses diáfanos obsoletos-modernos-eternos. Não há família e nem Estado. Social anarquista. Drogas e poesia. Um falo ereto e o rosto no ombro. Homem e mulher: um só. Sem patrão e família. Dna congênito. Poeta de chinelo. O selvagem místico sexual. Sem moral, leis ou regras. Rimbauds esporrando vertigem. Cu, buceta e pau. Pau, buceta e cu. Sem família, nem Estado. Renego o DNA que me impuseram sem meu consentimento. El Khouri rebento das tradicionalidades do senso comum. Punheta forçada na noite macabra de Goiânia. O zoológico grita o leão. Convulsões. Jacarepaguá On the road. Aplausos em teatros estrelares em metrópoles moribundas. Bundas e seios aqui e acolá. Querem que eu saia do ventre que me vomitou em um março qualquer de um interior qualquer em um hospital qualquer de um Estado qualquer no centro do centro do mundo, de qualquer mundo? Seus olhos são olhos e o que tem haver a dialética nisso? Olhos platônicos perante a república. Por que meus quadros incomodam e ferem tanto o genoma aristotélico envolto nesse pano sujo de sangue e sêmen? Porra grudada nos dedos. Vida alheia é alheia. Os deem dicionários e diplomas. Rasguem faces outorgadas de merda. Rubens Zachis Mescalina suicida grita. Um feto envolto naquele pano sujo canta "músicas para passar na mão". Fratricidas ignóbeis vermes nada entendem. E eu sou gênio. Gênio do bem e do mal. "Místico em estado selvagem". Filho da puta, luz do século. "Vagabundo iluminado". As inúmeras chaves do conhecimento.
quarta-feira, 27 de junho de 2018
terça-feira, 26 de junho de 2018
POR:DIEGO EL KHOURI
Gosto de gente de verdade. Gente que quebra garrafa, faz barraco e se desnuda em praça pública sem pudor, moral e lei. Não me interessa gente elegante, comedida, careta e embebida de moralismo e preconceito. Gente da dita direita, religiosos fanáticos, fascistas, me dão nojo, asco. E sigo penetrando a noite translúcida dos bêbados, cantando e dançando na "cratera da lua" um blues encharcado cheio de amor e tesão. Ultrapassar fronteiras intransponíveis. Sobrevoar cidades e histórias. O itinerário do poeta-bandido. E sigo na noite de pau duro atravessando o século.
domingo, 24 de junho de 2018
NO CORAÇÃO DE SHIRLEY — UM FILME DE EDYALA YGLESIAS
Por: Diego El Khouri
Coração. Órgão muscular oco (preenchido de identidade, forma e conteúdo). Coração. Coração vivo. Escarlate. Sistema Circulatório. Veemente força. Bombardeio.1,2,1,2,1,2... 12 centímetros de comprimento. Abarca toda existência. 1000 quilômetros. 9 cm de largura. Infinitas paisagens. Distância longínqua. 250 gramas de coração. Artérias e veias. Sangue. O espaço. A fronteira. Limites adjacentes. Paredes da memória. O que sente e bate. O que bate e absorve. Transparece e renova. 1, 2, 1, 2, 1, 2...
No coração da cidade. No ventre exposto e cruel da cidade. No olhar febril e alucinante da cidade. As luzes translúcidas e vertiginosas da cidade. Cidade-metrópole. Cidade-vertigem. Cidade-"delirium". No coração da noite. Da noite na cidade. Na intensa noite da cidade. No coração de alguém. No coração que fala em alguém. Talvez dela (talvez nosso). De todos nós. Shirley no centro da cidade. No meio do caos. Crisálidas luzes de neon. Imergida em caos e espanto. . "No centro do centro do centro do mundo". Do seu mundo. Do nosso mundo.
A cidade, o gênero, o corpo. Shirley parada no meio do nada. Estatelada. Espantada. Suando frio. Olhos arregalados, esbugalhados. Um coração que grita. Solitário como é a própria vida. Uma faca amolada de dois gumes. "Faca na carne". A mulher em posição de risco. Sempre em risco. Máculas de um patriarcado que fere e coibi. Minorias lançadas à esmo. Rasgadas da história (?). E que história! Edyala Yglesias toca fundo, fundo na alma humana nesse documento-denúncia intitulado "No coração de Shirley", um documentário (de 2002) tocante e totalmente atual — A violência diária perante as minorias (que na realidade não tem nada de minoria).
A cineasta, formada em cinema na França, trabalha atualmente em seu doutorado na Université de la Sorbonne-Nouvelle Paris o tema Representações do feminino nas cinematografias do Brasil, dos Estados Unidos e da França. Seu trabalho sempre caminha por entre as fronteiras. Os movimentos feministas, lgbts, entre outras correntes são fios condutores de sua busca cultural (que tem como caráter o social). O universo das zonas de conflitos nada mais é que faces sem máscaras dessa sociedade. Sociedade por vezes cruel e segmentária; caótica. Cada vez mais tecnocrática e individualista. Uma sociedade que gera preconceito desde a base. Violências são estimuladas e nem mesmo o avanço tecnológico ameniza esse impacto. Muitas vezes é ele mesmo gerador desse tipo de violência. O processo de sabotagem do ensino parte desses princípios: extermínio da população, miséria instalada, estado de instabilidade e medo. As mãos manchadas de sangue da omissão estão cravadas em todos nós. Não há como ficar indiferente a esse documentário. Em muitos casos não precisamos nem sair de nossos lares para ver (ou sentir) esse tipo de violência. É necessário transmitir e explanar tais verdades. Romper tabus. Tabus ainda hoje intransponíveis. As rupturas são necessárias e discutir tais temas se torna extremamente urgente. A cineasta Edyala Iglesias, nesse foco ideológico, "transita na zona de inúmeras relações de parentesco entre as questões urbanas na posse dos espaços em conformidade com a perspectiva de gênero ao problematizar a fixidez com que os estereótipos criados para e sobre a mulher parecem querer reduzi-la ao lugar de mercadoria."
O discurso feminista, galgado na denúncia contra o estado opressor, contra a omissão e os preconceitos são teias tênues por onde o curta metragem "No coração de Shirley" perpassa. Documentário-denúncia. Fotografia escura. Imagens que se escondem na penumbra da noite. A noite sem regras. Estados de negligência. O estado e sua "lógica" segmentária. "É preciso ser absolutamente moderno", já dizia o poeta francês Arthur Rimbaud. Estar a frente, refletir as problemáticas sem pudor. "Ver com olhos livres". É necessário através da educação, levantar tais temas afim do aperfeiçoamento do bom convívio com a vivência pacífica (e participativa) com a coletividade. É importante , trabalhar, por exemplo, questões de gênero na escola desde os primórdios da criança. A cultura do preconceito é algo histórico, milenar. Está enraizada de forma inconsciente no imaginário das pessoas. É preciso cessar isso. Preconceitos geram traumas, destroem vidas. A imagem da personagem travesti chamada Dória sendo espancada pela polícia (aquela que em tese deveria nos proteger) apenas por não se encaixar nos padrões da dita "família tradicional brasileira" é de cortar o coração. O grito da Dória é o grito que ecoa das minorias. Grito de dor e desespero. A educação se assim quiser se chamar revolucionária (como sonhava Paulo Freire) é necessário sim debater e levantar tais problemáticas tanto no ensino fundamental quanto médio e inclusive também na academia.
Corpo, gênero e preconceito: palavras chaves dessa obra cinematográfica. A arte, pelo viés da liberdade da consciência, dentro de um processo educacional, seria ferramenta eficaz para a transformação do indivíduo preconceituoso para um indivíduo mais tolerante com as diferenças. Entender que viver em um mundo rodeado de diferenças que é interessante. Tais aprisionamentos são construções sociais. Precisamos derrubar tais entraves. "No coração de Shirley" fala de fronteiras o tempo todo. Fronteiras que criamos e que, pela cegueira existencial, nos impede de ver e sentir claramente a vida. Fronteiras que nos cegam os olhos. Fronteiras que nos afastam do outro. Fronteiras que geram ódio. Fronteiras que geram violência. Voltar enfim, à máxima oswaldiana: "ver com olhos livres".
Vinte minutos de uma obra que nos tira da zona de conforto e sacode nosso ser. A fotografia da Mush Emmons dá um toque dramático à obra. Uma fotografia de penumbra que pouco revela as faces dos personagens. A cena de violência acompanhada de músicas atípicas a esse tipo de cena (músicas dançantes, romantizadas) dá um ar paradoxal ao curta-metragem. O ensino educacional através de debates, mesas redondas (não fazendo uso da ideia de hierarquia), numa conversa linear e aberta, usando de artifícios e linguagens próprias a cada fase do indivíduo (criança, adolescente, etc) poderia contribuir de forma positiva para a criação de gerações menos preconceituosas e violentas. No ensino de arte exemplos como o movimento Queer seria interessante serem trabalhados em sala de aula. E eu ouço Dora. Seus gritos ecoam em minha alma. Seu sangue é nosso sangue. Sua força é nossa força. Seu silêncio é nosso silêncio. Somos uno. Não há ninguém imune a coletividade. "Cada bala de fuzil é uma lágrima de oxalá". E que cada lágrima se transforme em energia, força, respeito e união.
quinta-feira, 21 de junho de 2018
A POÉTICA DO ABSURDO NA OBRA "BRANCA DE NEVE" DE PABLO BERGER
Por: Diego El Khouri
"O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho."
Orson Welles
"Os filmes são coleções de fotos inanimadas que foram submetidas à inseminação artificial."
Jim Morrison
A fantasia, o sonho, o mergulho no universo primal-humano, a palavra dita pelo olhar e pela mobilidade do corpo, iluminação dramática, por hora idílica, luz e sombra, a câmera guiada e levada a nos conduzir nesse labiríntico universo que é, em essência, o "DNA dos irmãos Grim", mestres das fábulas infantis, "argonautas do tempo" : nuances de olhar infantil / adulto emergindo em força e delicadeza em uma película que resgata uma história já conhecida do imaginário popular, porém dando gradações novas de uma contemporaneidade complexa e simples. Lançado em 2012, o longa-metragem Branca de Neve, do cineasta espanhol Pablo Berger, consegue ( e não é tarefa nada fácil) ser inovador em uma obra recheada de inúmeras adaptações. O clima é retrô, ao mesmo tempo que toca em pontos relevantes dos dias atuais; moderno com o pé no passado.
O poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) já dizia em um de seus célebres poemas, numa quase idealização completa do cotidiano e da vida (talvez do olhar sobre a vida) que "vai chegar o dia / que tudo que eu diga / seja poesia". O filme de Berger ( que é todo inspirado no cinema mudo) tem toda essa áurea abstrata e sensitiva da palavra sem voz, do comunicar-se pelo olhar num ambiente todo conectado com uma poética forte em identidade e burlesca em intensidade. A trilha sonora é assinada pelo cantor, compositor e ator Alfonso de Vilallonga. Ele se utiliza, em boa parte da obra, para narrar a história, dois tipos de som: som diegético e não diegético. O que seria som diegético? "É basicamente o som que os personagens que estão na cena podem ouvir", já som não diegético seria "músicas, locuções, trilhas que os personagens não podem ouvir, e são inseridas para trazer uma profundidade maior para a cena." Charlie Chaplin (1889-1977), o mestre do cinema mudo, dizia que “o som aniquila a grande beleza do silêncio.” O silêncio das palavras, silêncio onde tudo se torne poesia e êxtase. Silêncio impactante, ensurdecedor. Silêncio que tudo diz e tudo ouve. Silêncio que se expressa na emoção do momento, no jogo de ideias, na construção da "arquiteta composição". "Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música (Aldous Huxley). A melodia “ritmando a ação". O longa atravessa a Espanha no início do século XX. Uma Espanha que passava por mudanças comportamentais decisivas em sua história.
"Branca de Neve" teve duas adaptações recentes: os filmes norte-americanos “Espelho, Espelho Meu” (direção do Tarsem Singh) e “Branca de Neve e o Caçador” (um filme de Rupert Sanders) passam longe do texto original dos irmãos Grim. Nem a Disney (que popularizou para os "tempos modernos" essa antológica obra) conseguiu chegar tão perto da película de Berger. O espanhol utiliza muito na filmografia um clássico tipo de plano que é o Contra Plongée, que também é chamado de Câmera Baixa, já que neste enquadramento a "câmera filma o foco principal da cena de baixo para cima, deixando o espectador abaixo do personagem, ou objeto, e engrandecendo ele na cena." Esse tipo de plano, nesse filme especificamente, gera ideia de amplitude e também uma forma de buscar o olhar infantil, a criança que enxerga o mundo de baixo para cima, numa eterna volta à infância. Carmen, ou Carmencita (interpretada pela atriz Macarena García), a personagem principal, relatada da infância até a fase adulta, nunca deixa de negar, essa áurea da criança que habita em todos nós, mesmo que esse mundo mecanicista e pragmático tenta nos afastar dos primórdios da nossa existência, a essência que nos fazem seres dicotômicos.
No início do áudio visual, ou como alguns preferem chamar, " a imagem em movimento", o ilusionista francês Georges Méliès, no ano de 1896, demonstrou que o cinema não servia apenas para gravar a realidade, mas também para criar a fantasia. A invenção como suporte de criação artística e cultural. Pablo Berger, também se utiliza desse artifício. Alçar voos como ave rapina. Transcender o banal numa profusão onírica, as fronteiras imagéticas, "os aquários desordenados da imaginação". O movimento expressionista alemão, movimento do final do século XIX, deixa sua marca (viva e exposta, mesmo que de forma sutil e com ar idílico) suas raízes abissais nessa obra contemporânea. Movimento este, cujas origens podemos ver de forma bem evidente na pintura do holandês Van Gogh (1853- 1890), e que dentro do cinema foi bastante utilizado, principalmente entre os anos 1920 e 1930 (mesmo que o filme hollywoodiano ainda se utilize de determinadas conquistas dessa torrente específica de criação) : tema sombrio, personagens bizarros, distorção da imagem, dramaticidade excessiva, que se configura desde a maquiagem, as cenas e o cenário. Inúmeros assassinatos ocorridos na linha histórica desse filme de 2012 exemplificam, em parte, essa influência do Expressionismo Alemão e sobretudo a obra dos irmãos Grim. O olhar penetrando gradações de camadas de sentimento e cores (o filme é preto e branco e mesmo assim podemos falar em cores, nas múltiplas gradações do preto e cinza/ luz e sombra), olhares fortes e penetrantes se utilizando do close-up para dar profundidade a determinadas cenas, imagem sobreposta em imagem num resgata a tradição do cinema mudo.
“Tarefa difícil é fotografar o silêncio”. Abrir as “asas da imaginação”. Desprender-se do convencional e adentrar reinos, antes inóspitos e que, com a coragem do mergulho, se fazem presentes e necessários. Ultrapassar a primeira porta é difícil. Após os primeiros (porém significativos) passos fica mais fácil, mais leve. O humor, aquele humor enviesado, de esguelho, sorriso canto de boca destilando ironia, é tônica forte e abarca todo um clima que perpassa o filme, essa tríade: humor, drama e absurdo. O grotesco também pode ter camadas de sutileza e consegue dialogar tanto com o adulto quanto a criança. O “além do homem” nietzschiano, a superação “acima dos obstáculos” são ensinamentos que não se apresentam de forma clara. O existencialista francês Jean-Paul Satre (1905-1980) já dizia que o receptor interpreta uma obra artística de acordo com suas próprias ferramentas.
O espírito espanhol, a tourada, a jornada circense, a áurea moderna e arcaica criam uma sensação de não linearidade temporal que ao mesmo tempo desmistifica quando percebemos que o filme segue uma cronologia clássica: começo, meio e fim. A história do toureiro Antonio Villalta (Daniel Giménez Cacho), que durante uma apresentação sofreu um acidente que quase lhe custou a vida, perdendo os movimentos dos membros superiores e inferiores de seu corpo abre as portas para a jornada da menina Carmencita. Durante o susto do acidente, a esposa de Villalta se desespera e morre durante o parto sequencial do acidente que levou seu marido à internação. Este nega a criança como rejeição da perda e casa-se algum tempo depois com a enfermeira Encarna (Maribel Verdú), que se tornaria uma madrasta extremamente megera e sádica. Abandonada, a jovem Carmencita, criada nos primórdios de sua infância pela sua avó, interpretada pela atriz Ângela Molina, se vê novamente só, quando está faleceu. Mas o futuro lhe reservou a surpresa de um reencontro com o patriarca e um duelo com a madrasta. As cenas são dinâmicas, uma tônica moderna que Berger dá ao cinema mudo. A fotografia assinada pelo Kiko de la Rica, recheada de cortes rápidos (nenhuma cena passa mais do que 5 segundos sem corte) dá movimento e gera constantes sensações de surpresa. Após o mergulho não há como voltar atrás. Suspensos nesse mundo “simples e complexo”, sem o fio de Ariadne, sem salva vidas, sem guia ou bússola. A obra se apresenta tal como é: multifacetada, esplendorosa e (por que não?) banal — um riso mórbido, beijo colhido na manhã, uma lágrima que cai leve, leve, leve, e cai pungente e mágica como só a vida pode ser.
"O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho."
Orson Welles
"Os filmes são coleções de fotos inanimadas que foram submetidas à inseminação artificial."
Jim Morrison
A fantasia, o sonho, o mergulho no universo primal-humano, a palavra dita pelo olhar e pela mobilidade do corpo, iluminação dramática, por hora idílica, luz e sombra, a câmera guiada e levada a nos conduzir nesse labiríntico universo que é, em essência, o "DNA dos irmãos Grim", mestres das fábulas infantis, "argonautas do tempo" : nuances de olhar infantil / adulto emergindo em força e delicadeza em uma película que resgata uma história já conhecida do imaginário popular, porém dando gradações novas de uma contemporaneidade complexa e simples. Lançado em 2012, o longa-metragem Branca de Neve, do cineasta espanhol Pablo Berger, consegue ( e não é tarefa nada fácil) ser inovador em uma obra recheada de inúmeras adaptações. O clima é retrô, ao mesmo tempo que toca em pontos relevantes dos dias atuais; moderno com o pé no passado.
O poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) já dizia em um de seus célebres poemas, numa quase idealização completa do cotidiano e da vida (talvez do olhar sobre a vida) que "vai chegar o dia / que tudo que eu diga / seja poesia". O filme de Berger ( que é todo inspirado no cinema mudo) tem toda essa áurea abstrata e sensitiva da palavra sem voz, do comunicar-se pelo olhar num ambiente todo conectado com uma poética forte em identidade e burlesca em intensidade. A trilha sonora é assinada pelo cantor, compositor e ator Alfonso de Vilallonga. Ele se utiliza, em boa parte da obra, para narrar a história, dois tipos de som: som diegético e não diegético. O que seria som diegético? "É basicamente o som que os personagens que estão na cena podem ouvir", já som não diegético seria "músicas, locuções, trilhas que os personagens não podem ouvir, e são inseridas para trazer uma profundidade maior para a cena." Charlie Chaplin (1889-1977), o mestre do cinema mudo, dizia que “o som aniquila a grande beleza do silêncio.” O silêncio das palavras, silêncio onde tudo se torne poesia e êxtase. Silêncio impactante, ensurdecedor. Silêncio que tudo diz e tudo ouve. Silêncio que se expressa na emoção do momento, no jogo de ideias, na construção da "arquiteta composição". "Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música (Aldous Huxley). A melodia “ritmando a ação". O longa atravessa a Espanha no início do século XX. Uma Espanha que passava por mudanças comportamentais decisivas em sua história.
"Branca de Neve" teve duas adaptações recentes: os filmes norte-americanos “Espelho, Espelho Meu” (direção do Tarsem Singh) e “Branca de Neve e o Caçador” (um filme de Rupert Sanders) passam longe do texto original dos irmãos Grim. Nem a Disney (que popularizou para os "tempos modernos" essa antológica obra) conseguiu chegar tão perto da película de Berger. O espanhol utiliza muito na filmografia um clássico tipo de plano que é o Contra Plongée, que também é chamado de Câmera Baixa, já que neste enquadramento a "câmera filma o foco principal da cena de baixo para cima, deixando o espectador abaixo do personagem, ou objeto, e engrandecendo ele na cena." Esse tipo de plano, nesse filme especificamente, gera ideia de amplitude e também uma forma de buscar o olhar infantil, a criança que enxerga o mundo de baixo para cima, numa eterna volta à infância. Carmen, ou Carmencita (interpretada pela atriz Macarena García), a personagem principal, relatada da infância até a fase adulta, nunca deixa de negar, essa áurea da criança que habita em todos nós, mesmo que esse mundo mecanicista e pragmático tenta nos afastar dos primórdios da nossa existência, a essência que nos fazem seres dicotômicos.
No início do áudio visual, ou como alguns preferem chamar, " a imagem em movimento", o ilusionista francês Georges Méliès, no ano de 1896, demonstrou que o cinema não servia apenas para gravar a realidade, mas também para criar a fantasia. A invenção como suporte de criação artística e cultural. Pablo Berger, também se utiliza desse artifício. Alçar voos como ave rapina. Transcender o banal numa profusão onírica, as fronteiras imagéticas, "os aquários desordenados da imaginação". O movimento expressionista alemão, movimento do final do século XIX, deixa sua marca (viva e exposta, mesmo que de forma sutil e com ar idílico) suas raízes abissais nessa obra contemporânea. Movimento este, cujas origens podemos ver de forma bem evidente na pintura do holandês Van Gogh (1853- 1890), e que dentro do cinema foi bastante utilizado, principalmente entre os anos 1920 e 1930 (mesmo que o filme hollywoodiano ainda se utilize de determinadas conquistas dessa torrente específica de criação) : tema sombrio, personagens bizarros, distorção da imagem, dramaticidade excessiva, que se configura desde a maquiagem, as cenas e o cenário. Inúmeros assassinatos ocorridos na linha histórica desse filme de 2012 exemplificam, em parte, essa influência do Expressionismo Alemão e sobretudo a obra dos irmãos Grim. O olhar penetrando gradações de camadas de sentimento e cores (o filme é preto e branco e mesmo assim podemos falar em cores, nas múltiplas gradações do preto e cinza/ luz e sombra), olhares fortes e penetrantes se utilizando do close-up para dar profundidade a determinadas cenas, imagem sobreposta em imagem num resgata a tradição do cinema mudo.
“Tarefa difícil é fotografar o silêncio”. Abrir as “asas da imaginação”. Desprender-se do convencional e adentrar reinos, antes inóspitos e que, com a coragem do mergulho, se fazem presentes e necessários. Ultrapassar a primeira porta é difícil. Após os primeiros (porém significativos) passos fica mais fácil, mais leve. O humor, aquele humor enviesado, de esguelho, sorriso canto de boca destilando ironia, é tônica forte e abarca todo um clima que perpassa o filme, essa tríade: humor, drama e absurdo. O grotesco também pode ter camadas de sutileza e consegue dialogar tanto com o adulto quanto a criança. O “além do homem” nietzschiano, a superação “acima dos obstáculos” são ensinamentos que não se apresentam de forma clara. O existencialista francês Jean-Paul Satre (1905-1980) já dizia que o receptor interpreta uma obra artística de acordo com suas próprias ferramentas.
O espírito espanhol, a tourada, a jornada circense, a áurea moderna e arcaica criam uma sensação de não linearidade temporal que ao mesmo tempo desmistifica quando percebemos que o filme segue uma cronologia clássica: começo, meio e fim. A história do toureiro Antonio Villalta (Daniel Giménez Cacho), que durante uma apresentação sofreu um acidente que quase lhe custou a vida, perdendo os movimentos dos membros superiores e inferiores de seu corpo abre as portas para a jornada da menina Carmencita. Durante o susto do acidente, a esposa de Villalta se desespera e morre durante o parto sequencial do acidente que levou seu marido à internação. Este nega a criança como rejeição da perda e casa-se algum tempo depois com a enfermeira Encarna (Maribel Verdú), que se tornaria uma madrasta extremamente megera e sádica. Abandonada, a jovem Carmencita, criada nos primórdios de sua infância pela sua avó, interpretada pela atriz Ângela Molina, se vê novamente só, quando está faleceu. Mas o futuro lhe reservou a surpresa de um reencontro com o patriarca e um duelo com a madrasta. As cenas são dinâmicas, uma tônica moderna que Berger dá ao cinema mudo. A fotografia assinada pelo Kiko de la Rica, recheada de cortes rápidos (nenhuma cena passa mais do que 5 segundos sem corte) dá movimento e gera constantes sensações de surpresa. Após o mergulho não há como voltar atrás. Suspensos nesse mundo “simples e complexo”, sem o fio de Ariadne, sem salva vidas, sem guia ou bússola. A obra se apresenta tal como é: multifacetada, esplendorosa e (por que não?) banal — um riso mórbido, beijo colhido na manhã, uma lágrima que cai leve, leve, leve, e cai pungente e mágica como só a vida pode ser.
segunda-feira, 18 de junho de 2018
CANDELABRO ACESO
(Guru underground)
Por: Diego El Khouri
guru das noites malditas
lisergia pura de encantos mil
outsider "vagabundo do dharma"
sax translúcido-não-lúcido
"seja dionisios" na terra, no céu
no encontro dos mares
guru underground
"vá de retro, satanás!"
esse blues, essa noite
esse "raio de sândalo"
essa tempestade selvagem
que descreve nas bacantes
eurípedes, o poeta trágico,
é sina de bardo: caminho do Sol
levante sobre o céu lilás
o espírito de neal cassady
mergulha em cada palavra
em cada símbolo vivo
em cada gole de veneno,
vidas testemunham os moinhos,
café quente na caçarola
bêbados em bares de solidão
marias bonitas prenhes da luz
do último tiro de espingarda
desse cão farejador
filhos da puta da última estância
no recôndito transcendental
dos filhos de nitiren
encontro abrigo e leito,
as muralhas da poesia subversiva
que fez casa e gerou sementes
trouxe à tona (sempre)
o dionisíaco que habita em nós
"um bom trago desse veneno!"
as vísceras esfacelam páginas
amareladas pelo acaso
— pelo tempo de proust e bergson
a não linearidade cronológica
que esmaga as massas
no medo fabricado pela dependência
crisálidas flores, "clísteres de êxtase"
vulvas molhadas pelo desejo
mortal de perpetuação (delírio, fogo)
deuses famélicos obsoletos
demoníacas formas de visão
augustas ruas fétidas-sublimes
"a arte dos quatro ventos"
homem canábico (tv quebrada)
encerra nos olhos o olhar tempestivo
boca seca, suspiro da noite
o grito da noite, a fome na noite
a escuridão gélida da noite
nesse quarto, nessa sala
nessa parede ensimesmada
areia movediça, planície azul
arrepio na nuca, allen ginsberg,
"a ditadura do rosto humano"
nos pegou de assalto?
piva enfiado no (cu)me da morte
na praça da república do delírio
willer com seus demônios a la nietzsche
bebe o mijo de marquês de sade
homem prolífico da anarquia
"deus boêmio" fratricida,
a poesia é como o ácido
escriturário da loucura
"traficante das palavras"
no calabouço dean moriarty
william burroughs e Lorca gritam,
suas vozes ultrapassam planícies
tristes mulheres dançam
clowns ultrajantes gargalham
e eu aqui "dando milho aos pombos"
produtores sangue-sugas
angélica idiotia patológica
arsênico metaloide condutor
do mais intenso calor
assim no "teatro da crueldade"
na porrada no meio do estômago
na abstração da forma semi nua
nos abismos que separam
"a via crúcis" do corpo e da alma
um poeta se apresenta
se investiga, se desnuda
porque a nudez é necessária
como um sopro no raio de sol
beijo quente colhido na manhã
translúcida dos amores loucos
nuvens elétricas adjacentes
reverberam no orbe estrelar
dessa cristandade mórbida
o sacrifício e o vinho (lado a lado)
numa comunhão bizarra
entre o céu e a terra.
pela cripta de bocage
no "férvido transporte"
do êxtase supremo
rubens zachis mescalina
na ponte circular dadaísta
nos rodízios suicidas
no trapézio torto da morte
na clínica psiquiátrica
em algum ponto da cidade
dependurado
cabisbaixo
em posição de lótus
(vista embaçada)
180 graus para a direita
face no chão
lentamente,
lentamente,
lentamente...
o pássaro de edgar allan poe
na janela espreita olhares
devora a nossa comida
revira gavetas , armários
e a gente nem nota
e a gente nem percebe
o pássaro de Edgar allan poe
à noite aparece, invade à janela
bebi a nossa bebida
revira nossas entranhas
e a gente nem nota
e a gente nem percebe
quando amanhece (luz do céu)
o pássaro de Edgar allan poe
(palheta e pincel em riste)
assovia um canto baixinho
e a gente nem nota
a gente nem percebe
quando anoitece (trevas no céu)
o pássaro de edgar allan poe
fuma o nosso cigarro
veste nossa roupa
e a gente nem nota
a gente nem percebe
o pássaro de edgar allan poe
"como um velho bandido"
na encruzilhada (olhar vivo)
espreita a lua louca vadia,
os sinos delirantes da aurora
transpostos no mármore da noite
no raio ígneo de iluminação
o pássaro de Edgar allan poe
é eu e você, irmanados
no canto amarelo da página
emergidos em êxtase supremo
dançando aqui e acolá
a dança ditirâmbica ancestral
que pulsa nas veias dos poetas
dos lunáticos e amantes
como Shakespeare falava
lágrimas lânguidas lascivas
lustram a face niilista do bardo
(aquele que anda sobre a brasa
multifacetado de linguagens)
eis aqui o bardo-bárbaro
paracelso-laboratório-hospedagem
na gaiola livro umbral city kit cheque
navalha na porta do mercado
zincum in Brazil, the word louco
perambula nas ciências malditas
rubem zachis no hospício disse
"mas quando for o fim
quem sabe alguém vai se lembrar de mim?
do nada que eu sou"
das minhas semelhanças com o abismo
rubens zachis mescalina suicida
I don't khown I don't khown
que caminhos te levam às plagas
escarlates purgatórias de alghiere?
há alguma Beatriz? Alguma dulcineia?
paixão? beijo? amor? carinho?
"moinhos lindos" translúcidos
transitam no trânsito tântrico
tétrico torto triste travado tempo
tento flutuar pela abóboda celestial
atravessar para o outro lado
cuspir em bandeiras e estados
(suas mãos manchadas
com o sangue dos índios kaiowas
suas mãos maculadas pela escravidão
pelos séculos de mortes estúpidas/absurdas)
um olho de tigre tik tak remember
la contradición pueril sociedade sonora
primitivista selvagem blake rimbaud
na cidade ensolarada do rio de janeiro
naquela jacapaguá de atribulações
"dentro dentro dentro
dentro da américa pré colombiana"
"o amor das américas nos embala"
a fibra ótica solar nos envolve
clarão/budhi/ fogo/mel/ dança
reino incerto de doce insensatez
quem pariu o desespero ambulante da noite?
quem tragou para dentro de si
as últimas gotinhas desse amor?
quem trouxe para perto do peito
as fotos vibrantes daquele lindo fevereiro?
quem alimentou espasmos de susto
quem cuspiu altares aveludados
de um veludo que enforca e asfixia?
quem suspirou paixões de terceira classe
com bazucas de ferro em recintos
de vinte mil decibéis?
quem dançou na ponta do pé
um "samba bravo violento" sobre brasa quente?
quem crivou de bala a manhã sem graça
repleta de crianças sem estômago e voz?
quem engoliu as pirâmides de El Cantare
nas ruas sujas de Goiânia ou em qualquer outro lugar?
quem deflorou a "flor imunda de jade"
"numa manumissão schopenhaueriana"
de doce tato, vil e sem cor?
quem entortou a língua, feriu e cuspiu
trânsfugas existências do abismo
em finos cortes na alma e no corpo?
quem fez promessas de amor a luz da lua
com os lábios grudados na avenida anhanguera
ou em algum beco dessa cidade bela?
quem esporrou calor no trânsito vulgar
que escarneceu os sonhos de outrora
e empurrou para a fila do cinismo
entes queridos nos sanduíches da lamentação?
quem no sacrário abre as portas e entorpece o dia?
quem em vã ilusão entregou ao firmamento
a cara desnuda de cristo "no país dos banguelas"?
quem quebra garrafas e desliza sobre rimbauds
nos foscos fúnebres no néctar verde do mar?
quem tropeça-cai-levanta-mexe-sobe-volta-corta
rasga o céu e alimenta a hóstia sagrada da purificação?
quem, como vulcão, explode e como vulcão vê
a desordem e a ordem vigente (vi gente- vi gente-vi gente morta,
morta nas favelas e quebradas
voando e caindo em todo o lugar
em todo lugar: voando e caindo)
seus olhos atravessam cascatas
acordes sonoros de energia solar
somente semente, grão de areia
e nada mais...
esses olhos, olhos negros, negros de trevas
tétricas trevas, paraísos maiores
são olhos que envolvem e movem e traçam
paisagens, lançam âncoras ao mar
esses olhos negros, trevosos
rasgam meu peito, esbofeteiam minha cara
me abraçam esses olhos
olhos negros, serenos
— frios e quentes
como todo olho deve ser (?) —
sábado, 16 de junho de 2018
UMA CRÍTICA A CONCEPÇÃO MARXISTA DA ARTE REALISTA
Por: Ney Gonçalves
Durante décadas se tem pretendido criar a ideia de que o marxismo e o realismo na arte eram quase sinônimos: o primeiro se identificaria quase totalmente com o segundo, e este expressaria aquele em termos quase políticos. O resto dos movimentos artísticos não seria outra coisa que expressões “decadentes”, manifestações culturais da burguesia em sua etapa de decomposição. A atitude de severa crítica diante de tudo o que não seja realismo tem sido a característica da crítica denominada marxista que, inclusive, afirma que a insistência dos modernistas e pós-modernistas na alienação como fenômeno representativo do século XX não constituiria mais do que um desvio ou um escapismo, ao carecer de uma perspectiva revolucionaria que os localize em um contexto otimista da vida.
Não é somente isso: o realismo do século XIX aparece como a receita mágica para a arte moderna. Se bem que foi o húngaro Georg Lukács quem mais longe chegou por esse caminho, o realismo é, ao fim e a cabo, o tributo que pagam todos os estudiosos ao acercar-se das análises marxista da arte.
Ninguém pode negar de que Marx e Engels tinham grande simpatia pelo realismo, mas a partir daí dizer que eles fundaram uma estética materialista a partir desse movimento artístico - atenção que, aliás, os criadores do socialismo científico nunca deram- há uma distância muito grande.
Balzac, em particular, foi um dos escritores que mais mereceu sua atenção. Marx declarou que adquiriu mais conhecimento da história moderna da França em seus romances do que em todos os livros de história de sua época.
A partir daí, o selo realista foi imposto à pretensa estética materialista. Mas o que podemos entende por realismo? Variáveis e até mesmo contraditórias são suas definições e somente o posterior esquematismo poderia atribuir a seus cultuadores o apelido de exclusivamente progressista ou revolucionário, ou seja, os realistas foram e seriam os quase únicos amigos da revolução social, e sua arte, expressão disso.
Como é bem sabido, Balzac - o exemplo clássico - não era nem amigo nem porta-voz das classes trabalhadoras, defendia ideologicamente a monarquia que era aquela classe que desafiava a já forte burguesia. Enquanto isso, Paul Verlaine e Artur Rimbaud - expoentes simbolistas - tornaram-se oficiais da Comuna de Paris em 1871, o antecedente histórico da revolução bolchevique.
Como se pode ver pertencer a um movimento particular não atribui o caráter político aos artistas: havia monarquistas como Balzac e revolucionários como Courbet (ele também participou da Comuna de Paris); futuristas de um e outro signo e surrealistas (uma tendência que em algum momento veio a ser identificada como comunista) como Salvador Dalí, que apoiou o regime clericalista franquista.
A história da arte é atormentada por essas supostas contradições entre artistas revolucionários e politicamente conservadores ou vice-versa.
Mas, se compreende, quando procuramos descobrir o que é entendido pelo realismo não falando das inclinações de um ou outro artista, mas do movimento, da corrente, mas será um fato valioso considerar que destes podem sair solidariedades para fins muito opostos.
Então, o que significa realismo? Os movimentos do século XX não são realistas? Só podem reivindicar apenas certas tendências?
Muito possivelmente, estas são as principais questões que a crítica marxista deve levantar questões que também exigem outras respostas e às quais tentarei responder.
Critérios
Para Marx e Engels, havia quatro critérios essenciais do realismo: a) Tipicidade. Eles tinham que apresentar personagens representativos e situações típicas, b) Individualidade. Os personagens tinham de ser representativos das diferentes classes e apresentar-se com qualidades distintivas, únicas e individuais. c) construção orgânica da trama. "A tendência política deve surgir da situação e da própria ação, sem referência explícita a ela" (1). Ele aconselhou Engels em uma carta ao escritor Minna Kautsky que "quanto mais escondidos os pontos de vista do autor, melhor para o trabalho" (2); em sua correspondência com Lasalle, o camarada de Marx reclamou da literatura "em que os personagens anunciam ou proclamam suas ideias e sentimentos, em vez de manifestá-los através da ação e do comportamento de maneira natural" (3); d) a apresentação dos homens como sujeitos e objetos da história. Engels era amargo quando em um texto os trabalhadores apareciam dóceis e submissos, ele se interessava sobremaneira em mostrar uma classe lutadora, pujante, porque nela residia, sem mais, o destino da humanidade (4).
Os seres humanos, sujeitos e objetos da história, não podiam ser concebidos como o homem no centro da atenção e da representação artísticas, o homem não em relação a si mesmo, mas em relação direta com a sociedade.
A simpatia pelo realismo não era casual; partiu da função que atribuíam à arte: desmascarar a realidade, mostrando-a como esta é por trás dos véus ideológicos.
No entanto, não podemos ignorar que, igualmente, os pais do marxismo louvaram como as maiores manifestações artísticas da história, a arte grega e da Renascença e, como sabemos, ambas surgiram de circunstâncias muito precisas.
O cinquecento renascentista, com Rafael, Leonardo, Michelangelo e era uma arte aristocrática e refinada, totalmente dependente de seus patronos: a Igreja em primeiro lugar e algumas famílias de banqueiros. Poderiam as madonas rafaelistas e os santos de Michelangelo expressar mais do que os interesses da Igreja? Os escultores gregos da Idade de Ouro, eles revelaram uma das democracias mais antidemocráticas que existiam no mundo, baseadas na escravidão?
Quando Lunarcharsky fica desanimado diante Renoir, ele não lhe pede para pintar mais do que felicidade, e embora se entenda que o impressionismo produziu avanços notáveis na descoberta da realidade, à medida que se aproxima do dinamismo da própria vida e de suas condições mutáveis. Pode-se admitir que tal "felicidade" seja um reflexo apurado, se se levar em conta que nas últimas duas décadas do século passado já se apresentavam as condições que anos mais tarde gerariam a guerra Inter imperialista (5).
Como se observará, então, o desmascaramento da realidade não é a única missão atribuída à arte pelos marxistas; quando um gozo para com um Michelangelo ou para o Parthenon, a influência dessa qualidade é neutralizada pela evocação estética.
Lunacharski já aconselhava a crítica não só para contextualizar sociologicamente, mas também para julgar a arte "por suas próprias leis" (6).
Quando a premissa básica era contrabalançar a teoria da arte pela arte, e todo o sotaque deveria ser colocado ali, o realismo parecia vigoroso e como o instrumento mais apto para conhecer a realidade, para demonstrar que a arte não podia ignorar o que ocorria ao seu redor, mas é bom esclarecer que isso aconteceu no início do século XIX, quando as lágrimas românticas ainda não tinham diminuído, os mecanicistas dominavam o materialismo, o idealismo a dialética e o socialismo eram pura utopia.
Para justificar sua validade em nosso tempo, Lukács é forçado a exagerar as diferenças entre naturalismo e realismo, atribuindo ao primeiro à captura do superficial, do aparente e do segundo, o essencial da realidade (7).
Como separar tão nitidamente o superficial do essencial é algo que não podemos explicar, porque ambos não são opostos, são pares dialéticos e até a espuma é o essencial. O superficial é entendido pelo essencial e isso é reconhecido no primeiro.
Não pode ser dito, por outro lado, que importantes naturalistas como Cimabue, Giotto ou os próprios góticos capturaram o aparente: pelo contrário, eles eram uma fonte de conhecimento que permitia aos Quatrocentistas o subsequente domínio da forma externa do homem e da natureza.
Assim, para entender o essencial, o superficial é necessário. Também apreciamos a cerveja por sua espuma, porque ela faz parte de sua essência em um estado diferente.
Ticiano, ao contrário de Michelangelo, construiu suas figuras de fora para dentro, isto é, capturou em primeira instância a forma externa, a aparente, é isto um demérito, a julgar pelos resultados? A Renascença dos Países Baixos não conhecia as leis científicas sobre perspectiva ou proporção geométrica e ainda assim sua abordagem ao homem era tão precisa que às vezes não podemos distinguir um relevo de uma pintura. O detalhe de um Van der Wayden, ou os rostos camponeses de Van der Gooes não são superficiais. Eles partem dos personagens visuais à primeira vista para chegar à psicologia dos personagens. E, no entanto, eles são naturalistas ...
Ninguém pode negar que, com seus afrescos, assim como os de Rafael e muitos outros, podemos aprender e saber muito sobre a vida daqueles dias, mas não é uma visão desinteressada. "El divino", que gostava de ser chamado simplesmente de Michelangelo para secar, não só recebia encomendas, mas também ordens da Igreja, sua pintura, sua escultura refletia os desejos ou desejos de seus patronos, já no estágio elegíaco ou fatalista.
Arnold Hauser narra que no "Cinquecento" a cúria se assemelhava à corte de um imperador e às casas dos cardeais, a pequenas cortes principescas, eles gostam de arte e dão trabalho aos artistas para imortalizar seus próprios nomes; "Com cada Igreja, cada capela, cada imagem, os papas parecem ter desejado erigir um monumento para si mesmos e ter pensado em sua própria glória, e não na de Deus" (8). A tutela eclesiástica foi imposta com todo rigor.
A realidade apresentada, como se vê, é apenas uma parte dela, é aquela que corresponde às ambições das classes dominantes. Nos artistas da época não há mais que isso, mas são quase suficientes para inferir o movimento de toda a sociedade, mesmo que não seja pelas omissões manifestas. Assim, a arte pode ser entendida como um todo ou como parte dela, mas em si mesma total e generalizada. Se, como define Lukács, a arte é a autoconsciência da evolução da humanidade (9), a evolução não é linear, mas atormentada por contradições, marchas e contramarchas, e essa autoconsciência, apenas um processo de aproximação.
Mas essa definição é limitada: arte não é apenas conhecimento, informação ou reflexo, se você quiser, é também interpretação e evocação.
Podemos nos emocionar diante de um Rubens, um Rembrandt, mas o barroco foi um dos movimentos mais pautados que existiram na história.
A Contrarreforma ordenou que os novos santos, mártires, as virtudes que deveriam ser destacadas (batismo, virgindade), neutralizassem precisamente as influências de Lutero. Ela descreveu exatamente o que os artistas devem pintar, o Concílio de Trento passou quase trinta anos discutindo parte dele ... e ainda assim apreciamos um Murillo ou um Velázquez.
Na Idade Média, as artes plásticas tiveram um grande desenvolvimento e se tornaram a arte predominante por excelência, com o único efeito de que a Igreja pudesse invadir e conquistar as consciências dos camponeses analfabetos.
Aqueles que acreditam que durante a arte renascentista ela era apartada da Igreja estão errados. Ela era tão religiosa quanto seus patronos queriam (10); os nus - o exemplo que sempre é levado a tentar demonstrar sua irreligiosidade - no início foram mal vistos, mas depois, rapidamente assimilados. Sim, eles foram uma conquista artística, mas rapidamente se adaptaram às necessidades religiosas.
Enquanto Michelangelo não pode ser processado por suas próprias ideias, deve ser mencionado que "o divino" acreditava que as artes derivavam de ideias inatas colocadas por Deus no homem, uma teoria que será desenvolvida mais tarde no maneirismo.
Então, o que estamos desmascarando e estamos falando? Enquanto algo é revelado, algo está oculto, de modo que esta função é relativa e dependerá dos interesses sociais representados pelo artista.
Agora, há situações em que, apesar do artista e de sua ideologia, a verdade é levantada contra eles mesmos, a verdade se revolta e acaba se impondo. Em um artista, essa irrupção é quase irreprimível. Goya, por exemplo, era um pintor da corte, mas através de seus retratos expressava todo o desprezo por ela.
"O realismo de que falo", diz Engels, referindo-se a Balzac, "também pode se manifestar apesar das ideias do autor" (11).
Mas, como pode ser visto abaixo, as visões sobre a arte não são coincidentes entre os marxistas.
Leon Trotsky criticou vividamente aqueles que reduziram a Divina Comédia de Dante a um documento histórico.
"Colocar o problema dessa maneira é apagar a Divina Comédia do campo da arte. Se digo que o valor deste trabalho é que ele me ajuda a entender a mentalidade de certas classes em um determinado momento, eu o transformo em um documento histórico, pois, como uma obra de arte, a Divina Comédia dirige-se ao meu próprio espírito aos meus próprios sentimentos e deve dizer-lhes alguma coisa "(12).
Em seguida, o criador dos estados do Exército Vermelho que aborda a Dante a partir do ponto de vista histórico, é perfeitamente legítimo e necessário e que ajuda a nossa reação estética para o trabalho "mas não pode substituir uma coisa por outra" (13) . Mais tarde, e para ser conclusivo, o revolucionário russo recomenda: "A arte e a política não podem ser abordadas da mesma maneira. A arte tem suas regras e métodos, suas próprias leis de desenvolvimento e, acima de tudo, porque na criação artística processos subconscientes desempenhar um papel importante e esses processos são mais lentos, mais indolente, mais difícil de controlar e gerenciar, precisamente porque é subconsciente "(14).
Este parágrafo refuta a unilateralidade das críticas e separa bem o joio do trigo. Essa clareza pode ser se considerarmos que a proposta "não é criar uma nova cultura no sistema capitalista, mas derrubar o capitalismo para criar uma nova cultura ... embora, é claro, possam existir obras artísticas que contribuam para o desenvolvimento revolucionário ..."
Deste ponto de vista, uma das teses fundamentais de Lunacharski sobre a crítica marxista é errônea: "tudo o que ajuda o desenvolvimento e a vitória do proletariado é bom, tudo o que o prejudica é ruim" (15). A contradição grosseira de quem afirmava que a arte tinha suas próprias leis é de um simplismo que não ajudava em nada a entender a relação entre arte e política. Trotsky, enquanto isso, reiterou que a arte e a política não podem ser tratadas da mesma maneira, não se equiparando a elas.
Uma primeira conclusão, então, não é julgar um trabalho artístico baseado unicamente em sua suposta revelação da realidade, uma vez que essa tarefa não é obedecida - na prática - de maneira desinteressada, mas depende dos interesses sociais e políticos representados pela realidade do artista e como elas o influenciam, especificamente, em um determinado período.
A realidade
A realidade não pode senão ser entendida como um conceito dialético. Se partirmos da sua capacidade de conhecimento, dissemos que a arte é uma fonte de conhecimento. Mas essa realidade é multifacetada, mutável, dinâmica, distante, dialética, portanto, seu reflexo não pode ser outra coisa.
Como Brecht diria, "nada impede que os realistas Cervantes e Swift vejam os cavaleiros e lutarem com moinhos de vento e os cavalos para fundar seu próprio estado” (16) ... nem o próprio Brecht imagina tubarões em um mar de cultura.
Como Hauser explica, a arte é rigorosamente realista porque nunca se separa da experiência prática ou do conhecimento teórico, embora isso não signifique que não haja discrepâncias entre a visão artística e a realidade empírica.
Todo fantástico ou absurdo que a criação artística pode conter tem sua origem na própria realidade, no mundo da experiência. A ficção emerge do real, enquanto também o que era inicialmente irreal, então se tornou seu oposto.
"Apesar de quanta fantasia e extravagância entram por suas portas, a arte está tão inextricavelmente ligada à realidade quanto à ciência, embora de uma maneira diferente. Suas criações são sempre baseadas nos fundamentos da realidade, embora às vezes sigam um plano que lhe é estranho "(18).
A mitologia grega - a base da arte correspondente tão admirada por Marx - tinha mil laços com a realidade, magia, ritual, mito, realidade, que dá mais ...
Todos esses termos interagem uns com os outros, por isso é inútil distinguir o que é real e o que não é. A própria imaginação baseia-se em fatos existentes como base ou que logo existirão. Os processos inconscientes, eles não são parte de uma personalidade? Os fenômenos conscientes não agem uns sobre os outros com o inconsciente?
Essas formulações servem, é claro, se concordarmos que a arte é fundamentalmente mimese, reprodução da realidade, reflexo, mas também que a obra de arte cria formas específicas de reflexo da realidade, ao existir já constitui uma realidade própria.
Os futuristas russos acrescentaram que a arte não é um espelho, mas um martelo. Não reflete forma. Mas Trotsky respondeu: a partir de um espelho, ela só poderia ser falado de maneira relativamente relativa, porque ninguém pode exigir tal grau de objetividade que ele reflita como um espelho (19).
E isso é muito importante ser valorizado, já que dependerá dele para estender em mais ou menos o tão mencionado conceito de realidade.
Como se sabe, na arte coexiste dois termos: objetividade e subjetividade, sendo o segundo quase sempre predominante pela direção e característica artística.
Mas, embora seja visto, ambos os termos não são antagônicos: a subjetividade não é feita do nada, embora nada possa ser subjetivo: tem seu cordão umbilical com o objetivo, embora não seja a mesma coisa, é um e não um. .
Além disso, é até mesmo possível que exista independentemente de nós, um fato objetivo, também seja forjado por nós mesmos, é claro, não no uso de nossa plena consciência e vontade.
Eles não sabem disso, mas o fazem ”, disse Marx há muitos anos (20).
De sua parte, Lênin escreve: há uma diferença entre o subjetivo e o objetivo, mas essa diferença tem seus limites e, citando Hegel, "é errado considerar a subjetividade e a objetividade como uma oposição rígida e abstrata. Ambos são resolutamente dialéticos "(21).
Somente quando entendemos completamente essa relação é que podemos dizer que a arte não é mero reflexo: o artista seleciona, escolhe, interpreta, não nos dá a realidade de forma grosseira, mas conhecida por suas próprias experiências, suas ideias, seus interesses, suas formas, o objetivo e o subjetivo fundem-se nele.
A mera reprodução, assim como o objetivo, como o único termo é antiartístico. Verifique a diferença, então, entre a fotografia comum e a artística.
Agora, quando afirmo que a arte é mais que mero reflexo, que o artista escolhe, interpreta, é porque ele também toma partido em favor ou contra algo.
Nesse sentido, Emst Fischer está certo quando indica que o que caracteriza a relação artística com o mundo não é um reflexo passivo, mas uma intervenção ativa do objeto que deve ser representado, um ato de fusão, transformação, identificação ( 22).
Para o artista, em suma, a realidade é mais complexa, mais ambígua: "não apenas o mundo que existe independentemente de nós, mas também as associações produzidas por nossas fantasias" (23).
Seguindo Fischer nesse aspecto, a opção pelo artista reconhece uma hierarquia do real e é aí que ele é forçado a tomar partido por algo ou contra algo (24).
Forma-Conteúdo
Os rios de tinta que foram gastos nesta controvérsia são incalculáveis, especialmente desde o surgimento da "l'art pour l'art" e sua reivindicação pela arte da autonomia absoluta.
Os eixos do debate começaram por tentar estabelecer a primazia de um termo sobre o outro, a determinação da forma pelo conteúdo, em uma palavra, qual é o que importa.
Começaremos indicando que forma e conteúdo são duas coisas muito distintas, mas concebíveis apenas em relação mútua: não há obra de arte que seja uma forma ou outra que seja mero conteúdo.
Para Lukács, existe uma unidade dialética, mas o conteúdo determina a forma como uma forma de determinada matéria e reconhece na matéria sua condição de portadora imediata da evocação estética (25); a expressão artística é inseparável do conteúdo estético.
Lunacharski sugere ao crítico marxista que tome em primeiro lugar "como objeto de sua análise" o conteúdo do trabalho, porque "determina totalmente a forma" (26).
O próprio Plekhanov - de quem os dois autores acima mencionados finalmente adotam seus pontos de vista - afirmou que "qualquer invasão de ideias ou propaganda desnudas sempre diminui o trabalho" (27).
A forma aparece assim como uma concha, como um aspecto que teria apenas o propósito de cobrir o importante (o conteúdo) para que possa ser apreciado; como vestido da ideia ou propaganda, portanto, acessório. Mas, leia bem, acessório em termos de conteúdo, não em si, porque em relação a isso - antecipando em anos o conceito de publicidade capitalista - a embalagem é essencial para vender o produto.
Em sentido contrário, Gustave Flaubert queria escrever um livro sem assunto ou conteúdo, que era pura forma. Schiller alegou que a matéria foi aniquilada pela forma.
Flaubert, para muitos o verdadeiro pai do realismo, sentenciava: não há problemas nem bons nem maus, todos podem ser um e outro, porque dependem exclusivamente do seu tratamento. Na mesma direção, escritores como Mario Vargas Llosa concluem que o romance é forma.
Por sua vez, David Caute considera que a estética marxista não distinguiu suficientemente entre o "tema" histórico e social de uma obra e seu "conteúdo". O conteúdo não é apenas o assunto corretamente interpretado e dotado de uma expressão formal atraente, é o tema que media a forma artística utilizada e é mediada por ela. Caute continua: entendemos esse fato quando deixamos de identificar o conteúdo com a representação mimética do tema (28).
Segundo Hauser, a maneira pela qual um artista diz que algo constitui parte integrante do que ele tem a dizer e, portanto, a inseparabilidade de ambos os termos é claramente observada (29).
É verdade, então, que em toda obra de arte, forma e conteúdo elas devem se encontrar, se fundir, sem finalmente serem capazes de distinguir entre um elemento formal ou conteúdo.
Fischer percebe que em nosso tempo essa unidade parece frequentemente perturbada. No mundo burguês, formas desprovidas de conteúdo passaram a ser constituídas e, no mundo do trabalho, novos conteúdos foram incriminados em formas envelhecidas (30). Desta forma, forma e conteúdo podem não coincidir, o que afetará seriamente o resultado da criação artística. No entanto, é precipitado condenar um trabalho formal.
Às vezes, o único caminho é o conteúdo. Quando um artista inova na técnica artística sua proposta será ela, sua "mensagem" será a nova forma que, por sua vez, é um novo conteúdo.
Isso nos leva a um segundo problema: a mudança de conteúdo varia a forma, um novo conceito de dever, honra ou moralidade pode variar a forma do drama, por exemplo. Além disso, as mudanças dos gêneros, historicamente, foram motivadas por novos conteúdos: o épico, a tragédia, o drama, o romance. Cada um desses gêneros veio para capturar ideias inovadoras na respectiva sociedade.
Na arte plástica, por exemplo, a perspectiva, a seção áurea e o sistema de proporções renascentistas correspondem ao pretenso controle da natureza pelo homem. O conteúdo cientificista da concepção humana do "Quatrocento" impôs suas formas: simetria, proporção, preocupação pelo espaço e composição para ordenar o aparente caos.
As figuras humanas do "Cinquecento" eram imponentes e majestosas, precisamente para ratificar plasticamente esse domínio sobre a natureza, mas Deus ainda estava lá.
Com o maneirismo, essa forma seria modificada. A figura humana está perdida em uma pintura, eles são praticamente formigas, o espaço não é único, é fragmentado, a perspectiva é usada, mas não como o Renascimento, para se aproximar da realidade externa, mas para fugir dela, é por isso que as diagonais são cortadas ou ocultas, a figura é deformada, alongando-a e é possível que ela não seja mais representada inteiramente.
Sucede o Worringer chama de "vontade de formar" . Isto é, o artista não representa de uma maneira ou de outra a forma por ignorância ou incapacidade, mas por vontade. Mas essa vontade não é livre, é determinada.
No século XVI ocorreu uma profunda crise que incluiu diferentes aspectos: o "sacco" de Roma, sua invasão pela Espanha e França, a falência de poderosos banqueiros e, portanto, a perda de numerosos patronos; a reforma luterana, as descobertas copernicanas que mostram que a terra não é o eixo do sistema, mas apenas mais um planeta e que, portanto, o homem não poderia ser, como antes, o rei do universo.
A pequenez humana é imediatamente refletida na arte plástica, tenta escapar dessa realidade, afastar a arte dela, mas, dessa maneira, criar uma realidade nova e própria.
As novas formas correspondem a um novo conteúdo.
Juan Acha tem a virtude de esclarecer que a forma e o conteúdo são produtos sociais (31), e isso é o que temos visto até agora . Isto é, eles emergiram da história como fenômenos da luta do homem.
Portanto, também a forma pode originar um novo conteúdo, o que acontece quando o forma é o próprio conteúdo . E isso não é censurável, desde que não se trata de reduzir a criação artística a um certo modelo de realismo.
Como Acha acrescenta, a arte não é apenas uma expressão, antes de tudo, implica o domínio dos meios de expressão (32).
A forma é, ao mesmo tempo, expressão e meio de expressão e é essa expressão e meio de expressão do novo conteúdo. Em outras palavras, Antônio Gramsci a formula da seguinte maneira: o primeiro conteúdo que não satisfaz era também a forma e, quando a forma satisfatória é alcançada, o conteúdo também muda (33).
Um exemplo a ter em conta é o biomorfismo que se funde com a forma. O conteúdo das obras de Arp e Brancussi é o apego à natureza porque suas formas nos dão a conhecer as formas naturais. A forma procura conhecer as formas: expressão, meio, conteúdo e forma.
Outro aspecto controverso dessa relação de forma-conteúdo é sua exclusividade.
Lukács e outros autores modernos consideram que uma forma corresponde a um conteúdo. Mas esse não é o caso: a expressão e a recepção do mesmo conteúdo variam de arte para arte, de tendência para tendência, de trabalho para trabalho, de indivíduo para indivíduo. Em outras palavras, um conteúdo pode ter formas muito variadas e uma forma pode envolver diferentes conteúdos.
Se si pensa que o protesto contra a ordem estabelecida teve centenas de expressões diferentes ao longo dos anos ... sendo mais específico: A reação contra a Primeira Guerra Mundial, artisticamente falando, manifestou-se no dadaísmo, no expressionismo, no cubismo e no surrealismo.
Diferentes formas para o mesmo conteúdo. Além disso, o expressionismo, como forma particular, como atitude expressa como atitude, também expressava diferentes conteúdos ideológicos. O abstracionismo também é um exemplo disso.
Por outro lado é característica desde século a união de formas diferentes para formar uma nova, como a chamada nova imagem ou nova figuração.
Em resumo, é interessante sublinhar que forma-conteúdo não é mais do que outros dos pares dialéticos, bem como a objetividade-subjetividade, teoria e prática; que eles são inseparáveis e que não podem imaginá-los isolados uns dos outros, que eles interajam entre si e que, assim como um novo conteúdo pode transformar a forma e originar uma nova, ela também pode produzir um conteúdo diferente.
As formas são conteúdo, em sua percepção, os inícios da formação de conceitos são dados (34).
Por todas estas razões, em uma obra de arte, a primazia de nenhum dos dois pares não pode ser estabelecida. Ambos precisam um do outro, embora seja sobre coisas muito diferentes e eles não são os mesmos.
O crítico marxista deve partir da arte em sua totalidade e, embora seja formada a partir das partes, isso é mais do que a soma de todas elas. É apropriado atender à sua correspondência.
NOTAS:
(1) Marx-Engels, "Escritos sobre arte".
(2) Ibidem. Página 136
(3) Ibidem. Página 145.
(4) Ibidem. Página 136
(5) Anatoli Lunacharski, "Sobre Literatura e Arte". Página 315.
(6) Ibidem. Página 14.
(7) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Capítulo 1.
(8) Arnold Hauser, "História Social da Literatura e da Arte". Volume 1, Página 428.
(9) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Página 295.
(10) A. Hauser, Ibidem. Volume 2. Página 337.
(11) Marx-Engels, "Escritos sobre arte".
(12) Leon Trostky, "Literatura e revolução" '. Página 167
(13) Ibidem. Página 169
(14) Ibidem. Página 174.
(15) A. Lunacharski, "Ibidem. Página 16.
(16) Citado por A. Hauser. Volume 1. Sociologia da Arte. Página 18.
(17) Ibidem. Volume 1. Página 17.
(18) Ibidem. Página 18.
(19) Leon Trotsky, "Literatura e revolução". Página 64
(20) Karl Marx, O Capital Tomo 1, Página 88.
(21) Vladimir Lenin, "Cadernos Filosóficos". Página 31, 18 e 104.
(22) Lukács, Fischer e outros, "Controvérsia sobre o realismo". Páginas 105 e 106.
(23) Ibidem. Página 105-106.
(24) Ibidem. Página 105.
(25) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Página 326.
(26) Anatoli Lunacharski, Ibidem Página 14.
(27) Ibidem. Página 18.
(28) E. Lunn, "marxismo e modernismo". Página 39-40.
(29) Hauser, "Sociologia da arte". Volume 3, Página 506.
(30) Lukács, Fischer e outros, "Controvérsia sobre o realismo", página 104.
(31) Juan Acha, "Arte e sociedade latino-americana. O sistema de produção "Páginas 78 a 107.
(32) Ibidem. Página 34
(33) Gramsci, "Cultura e literatura". Página 184.
(34) R. Arnheim. Citado por Acha. Ibidem. Página 302.
Durante décadas se tem pretendido criar a ideia de que o marxismo e o realismo na arte eram quase sinônimos: o primeiro se identificaria quase totalmente com o segundo, e este expressaria aquele em termos quase políticos. O resto dos movimentos artísticos não seria outra coisa que expressões “decadentes”, manifestações culturais da burguesia em sua etapa de decomposição. A atitude de severa crítica diante de tudo o que não seja realismo tem sido a característica da crítica denominada marxista que, inclusive, afirma que a insistência dos modernistas e pós-modernistas na alienação como fenômeno representativo do século XX não constituiria mais do que um desvio ou um escapismo, ao carecer de uma perspectiva revolucionaria que os localize em um contexto otimista da vida.
Não é somente isso: o realismo do século XIX aparece como a receita mágica para a arte moderna. Se bem que foi o húngaro Georg Lukács quem mais longe chegou por esse caminho, o realismo é, ao fim e a cabo, o tributo que pagam todos os estudiosos ao acercar-se das análises marxista da arte.
Ninguém pode negar de que Marx e Engels tinham grande simpatia pelo realismo, mas a partir daí dizer que eles fundaram uma estética materialista a partir desse movimento artístico - atenção que, aliás, os criadores do socialismo científico nunca deram- há uma distância muito grande.
Balzac, em particular, foi um dos escritores que mais mereceu sua atenção. Marx declarou que adquiriu mais conhecimento da história moderna da França em seus romances do que em todos os livros de história de sua época.
A partir daí, o selo realista foi imposto à pretensa estética materialista. Mas o que podemos entende por realismo? Variáveis e até mesmo contraditórias são suas definições e somente o posterior esquematismo poderia atribuir a seus cultuadores o apelido de exclusivamente progressista ou revolucionário, ou seja, os realistas foram e seriam os quase únicos amigos da revolução social, e sua arte, expressão disso.
Como é bem sabido, Balzac - o exemplo clássico - não era nem amigo nem porta-voz das classes trabalhadoras, defendia ideologicamente a monarquia que era aquela classe que desafiava a já forte burguesia. Enquanto isso, Paul Verlaine e Artur Rimbaud - expoentes simbolistas - tornaram-se oficiais da Comuna de Paris em 1871, o antecedente histórico da revolução bolchevique.
Como se pode ver pertencer a um movimento particular não atribui o caráter político aos artistas: havia monarquistas como Balzac e revolucionários como Courbet (ele também participou da Comuna de Paris); futuristas de um e outro signo e surrealistas (uma tendência que em algum momento veio a ser identificada como comunista) como Salvador Dalí, que apoiou o regime clericalista franquista.
A história da arte é atormentada por essas supostas contradições entre artistas revolucionários e politicamente conservadores ou vice-versa.
Mas, se compreende, quando procuramos descobrir o que é entendido pelo realismo não falando das inclinações de um ou outro artista, mas do movimento, da corrente, mas será um fato valioso considerar que destes podem sair solidariedades para fins muito opostos.
Então, o que significa realismo? Os movimentos do século XX não são realistas? Só podem reivindicar apenas certas tendências?
Muito possivelmente, estas são as principais questões que a crítica marxista deve levantar questões que também exigem outras respostas e às quais tentarei responder.
Critérios
Para Marx e Engels, havia quatro critérios essenciais do realismo: a) Tipicidade. Eles tinham que apresentar personagens representativos e situações típicas, b) Individualidade. Os personagens tinham de ser representativos das diferentes classes e apresentar-se com qualidades distintivas, únicas e individuais. c) construção orgânica da trama. "A tendência política deve surgir da situação e da própria ação, sem referência explícita a ela" (1). Ele aconselhou Engels em uma carta ao escritor Minna Kautsky que "quanto mais escondidos os pontos de vista do autor, melhor para o trabalho" (2); em sua correspondência com Lasalle, o camarada de Marx reclamou da literatura "em que os personagens anunciam ou proclamam suas ideias e sentimentos, em vez de manifestá-los através da ação e do comportamento de maneira natural" (3); d) a apresentação dos homens como sujeitos e objetos da história. Engels era amargo quando em um texto os trabalhadores apareciam dóceis e submissos, ele se interessava sobremaneira em mostrar uma classe lutadora, pujante, porque nela residia, sem mais, o destino da humanidade (4).
Os seres humanos, sujeitos e objetos da história, não podiam ser concebidos como o homem no centro da atenção e da representação artísticas, o homem não em relação a si mesmo, mas em relação direta com a sociedade.
A simpatia pelo realismo não era casual; partiu da função que atribuíam à arte: desmascarar a realidade, mostrando-a como esta é por trás dos véus ideológicos.
No entanto, não podemos ignorar que, igualmente, os pais do marxismo louvaram como as maiores manifestações artísticas da história, a arte grega e da Renascença e, como sabemos, ambas surgiram de circunstâncias muito precisas.
O cinquecento renascentista, com Rafael, Leonardo, Michelangelo e era uma arte aristocrática e refinada, totalmente dependente de seus patronos: a Igreja em primeiro lugar e algumas famílias de banqueiros. Poderiam as madonas rafaelistas e os santos de Michelangelo expressar mais do que os interesses da Igreja? Os escultores gregos da Idade de Ouro, eles revelaram uma das democracias mais antidemocráticas que existiam no mundo, baseadas na escravidão?
Quando Lunarcharsky fica desanimado diante Renoir, ele não lhe pede para pintar mais do que felicidade, e embora se entenda que o impressionismo produziu avanços notáveis na descoberta da realidade, à medida que se aproxima do dinamismo da própria vida e de suas condições mutáveis. Pode-se admitir que tal "felicidade" seja um reflexo apurado, se se levar em conta que nas últimas duas décadas do século passado já se apresentavam as condições que anos mais tarde gerariam a guerra Inter imperialista (5).
Como se observará, então, o desmascaramento da realidade não é a única missão atribuída à arte pelos marxistas; quando um gozo para com um Michelangelo ou para o Parthenon, a influência dessa qualidade é neutralizada pela evocação estética.
Lunacharski já aconselhava a crítica não só para contextualizar sociologicamente, mas também para julgar a arte "por suas próprias leis" (6).
Quando a premissa básica era contrabalançar a teoria da arte pela arte, e todo o sotaque deveria ser colocado ali, o realismo parecia vigoroso e como o instrumento mais apto para conhecer a realidade, para demonstrar que a arte não podia ignorar o que ocorria ao seu redor, mas é bom esclarecer que isso aconteceu no início do século XIX, quando as lágrimas românticas ainda não tinham diminuído, os mecanicistas dominavam o materialismo, o idealismo a dialética e o socialismo eram pura utopia.
Para justificar sua validade em nosso tempo, Lukács é forçado a exagerar as diferenças entre naturalismo e realismo, atribuindo ao primeiro à captura do superficial, do aparente e do segundo, o essencial da realidade (7).
Como separar tão nitidamente o superficial do essencial é algo que não podemos explicar, porque ambos não são opostos, são pares dialéticos e até a espuma é o essencial. O superficial é entendido pelo essencial e isso é reconhecido no primeiro.
Não pode ser dito, por outro lado, que importantes naturalistas como Cimabue, Giotto ou os próprios góticos capturaram o aparente: pelo contrário, eles eram uma fonte de conhecimento que permitia aos Quatrocentistas o subsequente domínio da forma externa do homem e da natureza.
Assim, para entender o essencial, o superficial é necessário. Também apreciamos a cerveja por sua espuma, porque ela faz parte de sua essência em um estado diferente.
Ticiano, ao contrário de Michelangelo, construiu suas figuras de fora para dentro, isto é, capturou em primeira instância a forma externa, a aparente, é isto um demérito, a julgar pelos resultados? A Renascença dos Países Baixos não conhecia as leis científicas sobre perspectiva ou proporção geométrica e ainda assim sua abordagem ao homem era tão precisa que às vezes não podemos distinguir um relevo de uma pintura. O detalhe de um Van der Wayden, ou os rostos camponeses de Van der Gooes não são superficiais. Eles partem dos personagens visuais à primeira vista para chegar à psicologia dos personagens. E, no entanto, eles são naturalistas ...
Ninguém pode negar que, com seus afrescos, assim como os de Rafael e muitos outros, podemos aprender e saber muito sobre a vida daqueles dias, mas não é uma visão desinteressada. "El divino", que gostava de ser chamado simplesmente de Michelangelo para secar, não só recebia encomendas, mas também ordens da Igreja, sua pintura, sua escultura refletia os desejos ou desejos de seus patronos, já no estágio elegíaco ou fatalista.
Arnold Hauser narra que no "Cinquecento" a cúria se assemelhava à corte de um imperador e às casas dos cardeais, a pequenas cortes principescas, eles gostam de arte e dão trabalho aos artistas para imortalizar seus próprios nomes; "Com cada Igreja, cada capela, cada imagem, os papas parecem ter desejado erigir um monumento para si mesmos e ter pensado em sua própria glória, e não na de Deus" (8). A tutela eclesiástica foi imposta com todo rigor.
A realidade apresentada, como se vê, é apenas uma parte dela, é aquela que corresponde às ambições das classes dominantes. Nos artistas da época não há mais que isso, mas são quase suficientes para inferir o movimento de toda a sociedade, mesmo que não seja pelas omissões manifestas. Assim, a arte pode ser entendida como um todo ou como parte dela, mas em si mesma total e generalizada. Se, como define Lukács, a arte é a autoconsciência da evolução da humanidade (9), a evolução não é linear, mas atormentada por contradições, marchas e contramarchas, e essa autoconsciência, apenas um processo de aproximação.
Mas essa definição é limitada: arte não é apenas conhecimento, informação ou reflexo, se você quiser, é também interpretação e evocação.
Podemos nos emocionar diante de um Rubens, um Rembrandt, mas o barroco foi um dos movimentos mais pautados que existiram na história.
A Contrarreforma ordenou que os novos santos, mártires, as virtudes que deveriam ser destacadas (batismo, virgindade), neutralizassem precisamente as influências de Lutero. Ela descreveu exatamente o que os artistas devem pintar, o Concílio de Trento passou quase trinta anos discutindo parte dele ... e ainda assim apreciamos um Murillo ou um Velázquez.
Na Idade Média, as artes plásticas tiveram um grande desenvolvimento e se tornaram a arte predominante por excelência, com o único efeito de que a Igreja pudesse invadir e conquistar as consciências dos camponeses analfabetos.
Aqueles que acreditam que durante a arte renascentista ela era apartada da Igreja estão errados. Ela era tão religiosa quanto seus patronos queriam (10); os nus - o exemplo que sempre é levado a tentar demonstrar sua irreligiosidade - no início foram mal vistos, mas depois, rapidamente assimilados. Sim, eles foram uma conquista artística, mas rapidamente se adaptaram às necessidades religiosas.
Enquanto Michelangelo não pode ser processado por suas próprias ideias, deve ser mencionado que "o divino" acreditava que as artes derivavam de ideias inatas colocadas por Deus no homem, uma teoria que será desenvolvida mais tarde no maneirismo.
Então, o que estamos desmascarando e estamos falando? Enquanto algo é revelado, algo está oculto, de modo que esta função é relativa e dependerá dos interesses sociais representados pelo artista.
Agora, há situações em que, apesar do artista e de sua ideologia, a verdade é levantada contra eles mesmos, a verdade se revolta e acaba se impondo. Em um artista, essa irrupção é quase irreprimível. Goya, por exemplo, era um pintor da corte, mas através de seus retratos expressava todo o desprezo por ela.
"O realismo de que falo", diz Engels, referindo-se a Balzac, "também pode se manifestar apesar das ideias do autor" (11).
Mas, como pode ser visto abaixo, as visões sobre a arte não são coincidentes entre os marxistas.
Leon Trotsky criticou vividamente aqueles que reduziram a Divina Comédia de Dante a um documento histórico.
"Colocar o problema dessa maneira é apagar a Divina Comédia do campo da arte. Se digo que o valor deste trabalho é que ele me ajuda a entender a mentalidade de certas classes em um determinado momento, eu o transformo em um documento histórico, pois, como uma obra de arte, a Divina Comédia dirige-se ao meu próprio espírito aos meus próprios sentimentos e deve dizer-lhes alguma coisa "(12).
Em seguida, o criador dos estados do Exército Vermelho que aborda a Dante a partir do ponto de vista histórico, é perfeitamente legítimo e necessário e que ajuda a nossa reação estética para o trabalho "mas não pode substituir uma coisa por outra" (13) . Mais tarde, e para ser conclusivo, o revolucionário russo recomenda: "A arte e a política não podem ser abordadas da mesma maneira. A arte tem suas regras e métodos, suas próprias leis de desenvolvimento e, acima de tudo, porque na criação artística processos subconscientes desempenhar um papel importante e esses processos são mais lentos, mais indolente, mais difícil de controlar e gerenciar, precisamente porque é subconsciente "(14).
Este parágrafo refuta a unilateralidade das críticas e separa bem o joio do trigo. Essa clareza pode ser se considerarmos que a proposta "não é criar uma nova cultura no sistema capitalista, mas derrubar o capitalismo para criar uma nova cultura ... embora, é claro, possam existir obras artísticas que contribuam para o desenvolvimento revolucionário ..."
Deste ponto de vista, uma das teses fundamentais de Lunacharski sobre a crítica marxista é errônea: "tudo o que ajuda o desenvolvimento e a vitória do proletariado é bom, tudo o que o prejudica é ruim" (15). A contradição grosseira de quem afirmava que a arte tinha suas próprias leis é de um simplismo que não ajudava em nada a entender a relação entre arte e política. Trotsky, enquanto isso, reiterou que a arte e a política não podem ser tratadas da mesma maneira, não se equiparando a elas.
Uma primeira conclusão, então, não é julgar um trabalho artístico baseado unicamente em sua suposta revelação da realidade, uma vez que essa tarefa não é obedecida - na prática - de maneira desinteressada, mas depende dos interesses sociais e políticos representados pela realidade do artista e como elas o influenciam, especificamente, em um determinado período.
A realidade
A realidade não pode senão ser entendida como um conceito dialético. Se partirmos da sua capacidade de conhecimento, dissemos que a arte é uma fonte de conhecimento. Mas essa realidade é multifacetada, mutável, dinâmica, distante, dialética, portanto, seu reflexo não pode ser outra coisa.
Como Brecht diria, "nada impede que os realistas Cervantes e Swift vejam os cavaleiros e lutarem com moinhos de vento e os cavalos para fundar seu próprio estado” (16) ... nem o próprio Brecht imagina tubarões em um mar de cultura.
Como Hauser explica, a arte é rigorosamente realista porque nunca se separa da experiência prática ou do conhecimento teórico, embora isso não signifique que não haja discrepâncias entre a visão artística e a realidade empírica.
Todo fantástico ou absurdo que a criação artística pode conter tem sua origem na própria realidade, no mundo da experiência. A ficção emerge do real, enquanto também o que era inicialmente irreal, então se tornou seu oposto.
"Apesar de quanta fantasia e extravagância entram por suas portas, a arte está tão inextricavelmente ligada à realidade quanto à ciência, embora de uma maneira diferente. Suas criações são sempre baseadas nos fundamentos da realidade, embora às vezes sigam um plano que lhe é estranho "(18).
A mitologia grega - a base da arte correspondente tão admirada por Marx - tinha mil laços com a realidade, magia, ritual, mito, realidade, que dá mais ...
Todos esses termos interagem uns com os outros, por isso é inútil distinguir o que é real e o que não é. A própria imaginação baseia-se em fatos existentes como base ou que logo existirão. Os processos inconscientes, eles não são parte de uma personalidade? Os fenômenos conscientes não agem uns sobre os outros com o inconsciente?
Essas formulações servem, é claro, se concordarmos que a arte é fundamentalmente mimese, reprodução da realidade, reflexo, mas também que a obra de arte cria formas específicas de reflexo da realidade, ao existir já constitui uma realidade própria.
Os futuristas russos acrescentaram que a arte não é um espelho, mas um martelo. Não reflete forma. Mas Trotsky respondeu: a partir de um espelho, ela só poderia ser falado de maneira relativamente relativa, porque ninguém pode exigir tal grau de objetividade que ele reflita como um espelho (19).
E isso é muito importante ser valorizado, já que dependerá dele para estender em mais ou menos o tão mencionado conceito de realidade.
Como se sabe, na arte coexiste dois termos: objetividade e subjetividade, sendo o segundo quase sempre predominante pela direção e característica artística.
Mas, embora seja visto, ambos os termos não são antagônicos: a subjetividade não é feita do nada, embora nada possa ser subjetivo: tem seu cordão umbilical com o objetivo, embora não seja a mesma coisa, é um e não um. .
Além disso, é até mesmo possível que exista independentemente de nós, um fato objetivo, também seja forjado por nós mesmos, é claro, não no uso de nossa plena consciência e vontade.
Eles não sabem disso, mas o fazem ”, disse Marx há muitos anos (20).
De sua parte, Lênin escreve: há uma diferença entre o subjetivo e o objetivo, mas essa diferença tem seus limites e, citando Hegel, "é errado considerar a subjetividade e a objetividade como uma oposição rígida e abstrata. Ambos são resolutamente dialéticos "(21).
Somente quando entendemos completamente essa relação é que podemos dizer que a arte não é mero reflexo: o artista seleciona, escolhe, interpreta, não nos dá a realidade de forma grosseira, mas conhecida por suas próprias experiências, suas ideias, seus interesses, suas formas, o objetivo e o subjetivo fundem-se nele.
A mera reprodução, assim como o objetivo, como o único termo é antiartístico. Verifique a diferença, então, entre a fotografia comum e a artística.
Agora, quando afirmo que a arte é mais que mero reflexo, que o artista escolhe, interpreta, é porque ele também toma partido em favor ou contra algo.
Nesse sentido, Emst Fischer está certo quando indica que o que caracteriza a relação artística com o mundo não é um reflexo passivo, mas uma intervenção ativa do objeto que deve ser representado, um ato de fusão, transformação, identificação ( 22).
Para o artista, em suma, a realidade é mais complexa, mais ambígua: "não apenas o mundo que existe independentemente de nós, mas também as associações produzidas por nossas fantasias" (23).
Seguindo Fischer nesse aspecto, a opção pelo artista reconhece uma hierarquia do real e é aí que ele é forçado a tomar partido por algo ou contra algo (24).
Forma-Conteúdo
Os rios de tinta que foram gastos nesta controvérsia são incalculáveis, especialmente desde o surgimento da "l'art pour l'art" e sua reivindicação pela arte da autonomia absoluta.
Os eixos do debate começaram por tentar estabelecer a primazia de um termo sobre o outro, a determinação da forma pelo conteúdo, em uma palavra, qual é o que importa.
Começaremos indicando que forma e conteúdo são duas coisas muito distintas, mas concebíveis apenas em relação mútua: não há obra de arte que seja uma forma ou outra que seja mero conteúdo.
Para Lukács, existe uma unidade dialética, mas o conteúdo determina a forma como uma forma de determinada matéria e reconhece na matéria sua condição de portadora imediata da evocação estética (25); a expressão artística é inseparável do conteúdo estético.
Lunacharski sugere ao crítico marxista que tome em primeiro lugar "como objeto de sua análise" o conteúdo do trabalho, porque "determina totalmente a forma" (26).
O próprio Plekhanov - de quem os dois autores acima mencionados finalmente adotam seus pontos de vista - afirmou que "qualquer invasão de ideias ou propaganda desnudas sempre diminui o trabalho" (27).
A forma aparece assim como uma concha, como um aspecto que teria apenas o propósito de cobrir o importante (o conteúdo) para que possa ser apreciado; como vestido da ideia ou propaganda, portanto, acessório. Mas, leia bem, acessório em termos de conteúdo, não em si, porque em relação a isso - antecipando em anos o conceito de publicidade capitalista - a embalagem é essencial para vender o produto.
Em sentido contrário, Gustave Flaubert queria escrever um livro sem assunto ou conteúdo, que era pura forma. Schiller alegou que a matéria foi aniquilada pela forma.
Flaubert, para muitos o verdadeiro pai do realismo, sentenciava: não há problemas nem bons nem maus, todos podem ser um e outro, porque dependem exclusivamente do seu tratamento. Na mesma direção, escritores como Mario Vargas Llosa concluem que o romance é forma.
Por sua vez, David Caute considera que a estética marxista não distinguiu suficientemente entre o "tema" histórico e social de uma obra e seu "conteúdo". O conteúdo não é apenas o assunto corretamente interpretado e dotado de uma expressão formal atraente, é o tema que media a forma artística utilizada e é mediada por ela. Caute continua: entendemos esse fato quando deixamos de identificar o conteúdo com a representação mimética do tema (28).
Segundo Hauser, a maneira pela qual um artista diz que algo constitui parte integrante do que ele tem a dizer e, portanto, a inseparabilidade de ambos os termos é claramente observada (29).
É verdade, então, que em toda obra de arte, forma e conteúdo elas devem se encontrar, se fundir, sem finalmente serem capazes de distinguir entre um elemento formal ou conteúdo.
Fischer percebe que em nosso tempo essa unidade parece frequentemente perturbada. No mundo burguês, formas desprovidas de conteúdo passaram a ser constituídas e, no mundo do trabalho, novos conteúdos foram incriminados em formas envelhecidas (30). Desta forma, forma e conteúdo podem não coincidir, o que afetará seriamente o resultado da criação artística. No entanto, é precipitado condenar um trabalho formal.
Às vezes, o único caminho é o conteúdo. Quando um artista inova na técnica artística sua proposta será ela, sua "mensagem" será a nova forma que, por sua vez, é um novo conteúdo.
Isso nos leva a um segundo problema: a mudança de conteúdo varia a forma, um novo conceito de dever, honra ou moralidade pode variar a forma do drama, por exemplo. Além disso, as mudanças dos gêneros, historicamente, foram motivadas por novos conteúdos: o épico, a tragédia, o drama, o romance. Cada um desses gêneros veio para capturar ideias inovadoras na respectiva sociedade.
Na arte plástica, por exemplo, a perspectiva, a seção áurea e o sistema de proporções renascentistas correspondem ao pretenso controle da natureza pelo homem. O conteúdo cientificista da concepção humana do "Quatrocento" impôs suas formas: simetria, proporção, preocupação pelo espaço e composição para ordenar o aparente caos.
As figuras humanas do "Cinquecento" eram imponentes e majestosas, precisamente para ratificar plasticamente esse domínio sobre a natureza, mas Deus ainda estava lá.
Com o maneirismo, essa forma seria modificada. A figura humana está perdida em uma pintura, eles são praticamente formigas, o espaço não é único, é fragmentado, a perspectiva é usada, mas não como o Renascimento, para se aproximar da realidade externa, mas para fugir dela, é por isso que as diagonais são cortadas ou ocultas, a figura é deformada, alongando-a e é possível que ela não seja mais representada inteiramente.
Sucede o Worringer chama de "vontade de formar" . Isto é, o artista não representa de uma maneira ou de outra a forma por ignorância ou incapacidade, mas por vontade. Mas essa vontade não é livre, é determinada.
No século XVI ocorreu uma profunda crise que incluiu diferentes aspectos: o "sacco" de Roma, sua invasão pela Espanha e França, a falência de poderosos banqueiros e, portanto, a perda de numerosos patronos; a reforma luterana, as descobertas copernicanas que mostram que a terra não é o eixo do sistema, mas apenas mais um planeta e que, portanto, o homem não poderia ser, como antes, o rei do universo.
A pequenez humana é imediatamente refletida na arte plástica, tenta escapar dessa realidade, afastar a arte dela, mas, dessa maneira, criar uma realidade nova e própria.
As novas formas correspondem a um novo conteúdo.
Juan Acha tem a virtude de esclarecer que a forma e o conteúdo são produtos sociais (31), e isso é o que temos visto até agora . Isto é, eles emergiram da história como fenômenos da luta do homem.
Portanto, também a forma pode originar um novo conteúdo, o que acontece quando o forma é o próprio conteúdo . E isso não é censurável, desde que não se trata de reduzir a criação artística a um certo modelo de realismo.
Como Acha acrescenta, a arte não é apenas uma expressão, antes de tudo, implica o domínio dos meios de expressão (32).
A forma é, ao mesmo tempo, expressão e meio de expressão e é essa expressão e meio de expressão do novo conteúdo. Em outras palavras, Antônio Gramsci a formula da seguinte maneira: o primeiro conteúdo que não satisfaz era também a forma e, quando a forma satisfatória é alcançada, o conteúdo também muda (33).
Um exemplo a ter em conta é o biomorfismo que se funde com a forma. O conteúdo das obras de Arp e Brancussi é o apego à natureza porque suas formas nos dão a conhecer as formas naturais. A forma procura conhecer as formas: expressão, meio, conteúdo e forma.
Outro aspecto controverso dessa relação de forma-conteúdo é sua exclusividade.
Lukács e outros autores modernos consideram que uma forma corresponde a um conteúdo. Mas esse não é o caso: a expressão e a recepção do mesmo conteúdo variam de arte para arte, de tendência para tendência, de trabalho para trabalho, de indivíduo para indivíduo. Em outras palavras, um conteúdo pode ter formas muito variadas e uma forma pode envolver diferentes conteúdos.
Se si pensa que o protesto contra a ordem estabelecida teve centenas de expressões diferentes ao longo dos anos ... sendo mais específico: A reação contra a Primeira Guerra Mundial, artisticamente falando, manifestou-se no dadaísmo, no expressionismo, no cubismo e no surrealismo.
Diferentes formas para o mesmo conteúdo. Além disso, o expressionismo, como forma particular, como atitude expressa como atitude, também expressava diferentes conteúdos ideológicos. O abstracionismo também é um exemplo disso.
Por outro lado é característica desde século a união de formas diferentes para formar uma nova, como a chamada nova imagem ou nova figuração.
Em resumo, é interessante sublinhar que forma-conteúdo não é mais do que outros dos pares dialéticos, bem como a objetividade-subjetividade, teoria e prática; que eles são inseparáveis e que não podem imaginá-los isolados uns dos outros, que eles interajam entre si e que, assim como um novo conteúdo pode transformar a forma e originar uma nova, ela também pode produzir um conteúdo diferente.
As formas são conteúdo, em sua percepção, os inícios da formação de conceitos são dados (34).
Por todas estas razões, em uma obra de arte, a primazia de nenhum dos dois pares não pode ser estabelecida. Ambos precisam um do outro, embora seja sobre coisas muito diferentes e eles não são os mesmos.
O crítico marxista deve partir da arte em sua totalidade e, embora seja formada a partir das partes, isso é mais do que a soma de todas elas. É apropriado atender à sua correspondência.
NOTAS:
(1) Marx-Engels, "Escritos sobre arte".
(2) Ibidem. Página 136
(3) Ibidem. Página 145.
(4) Ibidem. Página 136
(5) Anatoli Lunacharski, "Sobre Literatura e Arte". Página 315.
(6) Ibidem. Página 14.
(7) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Capítulo 1.
(8) Arnold Hauser, "História Social da Literatura e da Arte". Volume 1, Página 428.
(9) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Página 295.
(10) A. Hauser, Ibidem. Volume 2. Página 337.
(11) Marx-Engels, "Escritos sobre arte".
(12) Leon Trostky, "Literatura e revolução" '. Página 167
(13) Ibidem. Página 169
(14) Ibidem. Página 174.
(15) A. Lunacharski, "Ibidem. Página 16.
(16) Citado por A. Hauser. Volume 1. Sociologia da Arte. Página 18.
(17) Ibidem. Volume 1. Página 17.
(18) Ibidem. Página 18.
(19) Leon Trotsky, "Literatura e revolução". Página 64
(20) Karl Marx, O Capital Tomo 1, Página 88.
(21) Vladimir Lenin, "Cadernos Filosóficos". Página 31, 18 e 104.
(22) Lukács, Fischer e outros, "Controvérsia sobre o realismo". Páginas 105 e 106.
(23) Ibidem. Página 105-106.
(24) Ibidem. Página 105.
(25) Georg Lukács, "Estética". Volume 2. Página 326.
(26) Anatoli Lunacharski, Ibidem Página 14.
(27) Ibidem. Página 18.
(28) E. Lunn, "marxismo e modernismo". Página 39-40.
(29) Hauser, "Sociologia da arte". Volume 3, Página 506.
(30) Lukács, Fischer e outros, "Controvérsia sobre o realismo", página 104.
(31) Juan Acha, "Arte e sociedade latino-americana. O sistema de produção "Páginas 78 a 107.
(32) Ibidem. Página 34
(33) Gramsci, "Cultura e literatura". Página 184.
(34) R. Arnheim. Citado por Acha. Ibidem. Página 302.
quarta-feira, 13 de junho de 2018
FUNKADELIC SESSIONS
Fui convidado a fazer a curadoria dos poemas que fariam parte de um mural em um evento no Mondo Coletivo (local que já expus minhas telas e também pintei um grafite). Esse evento teve como tema o movimento Afrofuturismo e todos os poemas escolhidos são de autores negros e negras do Brasil todo.
Diego El Khouri
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Abaixo as fotos e os poemas:
* "O Afrofuturismo é um movimento estético que põem os negros como protagonistas no passado, presente e futuro englobando música, cinema, literatura, moda e artes plásticas. É também um movimento politico de fortalecimento e resgate de identidade."
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RELIGIÃO
(Waldo Motta)
A poesia é a minha
sacrossanta escritura,
cruzada evangélica
que deflagro deste púlpito.
Só ela me salvará
da guela do abismo.
Já não digo como ponte
que me religue
a algum distante céu,
mas como pinguela mesmo,
elo entre alheios eus.
______
CRIOULA
(Alzira Rufino)
eu sou crioula decente
não sou vil
estou nas cordas
em equilíbrio
de um brasil
a minha cor apavora
essa raça agride ouvi dizer
não é nos dentes do negro
não é no sexo do negro
é na arte do negro
de viver
melhor dizendo
sobreviver
com essa coisa que arrasta
o tronco que tentam esconder
mas esses troncos existem
no conviver
os troncos estão nas favelas
vejo troncos nas vielas
nas moradias fedidas
nas peles sem esperança
nas enxurradas de não
no jogo das damas e reis
eu me perdi
nas rotas dos estiletes
nas celas e nos engodos
negro carretel de rolo
querem fazer um mundo
__________
(Mazinho Souza)
tempo não se decifra
em calendários
rumos não se edificam
em vigas lógicas
é mais por incertezas
que se compõe um sábio
que por filosofia do destino
fome nunca pede cardápio
e se a vida for este contrato
não assino
__________
(Rafael Vaz)
Ela vira o corpo
em sentido a mim e
conta a última aventura
por qual ela passou.
95% das mulheres que conheço
não sente atração por mim.
Sempre fui um bom amigo.
Digo a ela que há tempos
torcia por ela.
E por isso toda vez que
que eu andava na rua
as pessoas mudavam de calçada.
Poemas de amor também
podem falar de quando
não se é amado.
Então você traga o beck
e joga toda a fumaça no meu rosto.
Incrível como eu viajo e
você continua intrigada com
o joguinho do seu celular.
_________
(Marisa Vieira)
Negra Vieira
Sou mar
sou terra
sou ar
da atmosfera
sou rara
sou fogo
cara a cara
abro o jogo
poeta
riso franco
negra
em terra de branco
___________
Palhaço
(Clarisse da Costa)
Cada palhaço carrega com sigo
Dores
Nos disfarces de seus risos;
No picadeiro da vida
Não passa de um menino
Fazendo graça
Para o outro ri.
Os borrões da sua história
São manchas
Das cores
De suas tintas,
Das lágrimas contidas;
De lindos sonhos
Que o mundo não
Permitiu sonhar!
____________
SUBSTÂNCIA VIVA
(Sarah El Khouri)
Seguir na contramão de uma série de falsas verdades,
Induzir minha substância para deliberação.
Construir-me contra o que me curva ou me exalta.
Ser inteira ciente de que não sou ainda completa.
Reconstruir-me e embora sob escombros
ter consciência de tudo que o me liberta.
Sou constituída de tanta agregação turva,
embora a simplicidade extravase
o que há de mais vivo em minha natureza.
Sou um amontoado de ruas curvas, precipícios,
ladeiras, construções inacabadas, céu azul safírico.
Sou sonhos cessados, loucuras expostas,
devaneios sentidos, alegrias mortas,
feridas abertas que anseio por curar,
chagas que não evito fuçar embora sinta dor...
Sou o pensamento distante enquanto tomo café.
O devaneio inteligente enquanto bebo cerveja barata.
O olhar doce enquanto fito quem amo.
A nostalgia silenciosa num domingo parado.
A mudez sagrada quando olho o crepúsculo.
A nudez, a pele, o corpo clamando por outro.
O otimismo ativista por um mundo melhor.
Em mim há o palhaço, o triste, a santa, a vadia, o louco.
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DIA DOS PROFESSORES
(Dalberto Gomes)
A ti, Mestre
O legado de Deus
De ser a bússola, a luz o archote
Da sabedoria e educação
Para iluminar caminhos obscuros do ser
Dando lume ao saber.
A ti, professora que luta no dia a dia
Nos longínquos estéreis sertões
Que percorre árduos caminhos
Entre lágrimas de esperança e decepções
Como heroína nunca titubeou
Em buscar novos corações
Abraçando a divina profissão que acolheste
Na qual se coroou.
A ti, tia
Carinhosa, hospitaleira,
Injetas nas mentes dos infantes a luz derradeira
Luz esta que iluminará o homem do futuro
Clareando caminhos e destinos
Direcionando-os a glória e a perfeição
Conquista, independência e liberdade
Dando o livre arbítrio e sapiência para toda a eternidade.
Mestre ...
De hoje, de agora, de sempre
Minha emoção, saudação e louvor
Desculpas (pelas bagunças), saudade e carinho
Neste dia a ti consagrado
Dedico-te...
Meu fraterno amor.
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ZUMBI SALDO
(Elisa Lucinda)
Zumbi, meu Zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamenrindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.
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OXUM MENINA
(Fátima Trinchão)
À beira dos rios,
À beira das lagoas,
Córregos,
Cachoeiras,
Lagos e lagoas mansas,
Oxum Menina
E canções,
Oxum canta,
Oxum encanta,
Oxum reina,
Oxum manda,
Oxum brilha,
Ora iê iê ô
Oxum Divina,
Traz-me o vento
O seu canto doce,
Perene,
Pungente,
Como carícia
Leve e macia
Que nos penetra
E inspira,
Ora Iê iê ô
Oxum Divina,
Ora iê iê ô
Oxum Menina!
E no fim da tarde
Morena,
Nas águas doces
cristalinas,
É a sua voz
que ouço,
Ora Iê Iê ô
Oxum Menina!
E quando percorre
A brisa,
O leito do rio,
Serena,
Murmurando oração
A Maria e a Jesus,
Coro de Anjos
nas Alturas
resplandece
ao canto seu,
Oxum Divina,
E toda luz,
Ora iê iê ô,
Oxum Menina!
Quedam-se todos
a ouví-la,
O seu canto
e o seu cantar,
Nas águas doces
serenas,
repletas de forças
plenas,
Oxum vive,
Oxum reina,
Ora iê iê ô,
Oxum Menina,
Ora iê iê ô,
Oxum Divina.
__________
e dos meus beijos
a saliva
(Jarid Arraes )
te olho derramada
escorrendo
em contraste
no lençol
absorvida
e quero cada poro
induzindo melanina
desmedida
preta,
você tem a textura
qua arrepia
meus pelos
tem o toque
que desperta
meus peitos
e meus olhos
transbordam
um tesão
que é espelho.
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Cartográfica
(Carina Castro)
de distâncias traçadas entre sonhos
passos e pousos
redimensiono o interior do meu interior
e a brevidade entre pensamento e pensamento
não acompanha o vagar do corpo
entregue ao manejo da maré
nem o vagar da garrafa ondulando sobre os dias
entre soluços de bêbado e pranto
encontraste a carta, mas não entendeste a letra
e não há legendas, coordenadas, vozes,
mapas para minha memória
dói fundo a longitude de meus garranchos
perdidos no efémero de um idioma
ilegível entre latentes caligrafias, alfabetos
e não vês no céu
a constelação com meu nome
não podes ler minhas mãos
e latejando minhas letras dizem
teu futuro, te dão leme
leem tuas digitais
no leme, no copo, na garrafa
só não traduz a lancinante latitude
do teu entendimento
envias de volta um papel em branco
________________
Ela, eu, e o parabéns.
(Gessica Borges)
Então ela vem
De uma vez só
Muita vezes
Na rua, no quarto, enquanto olho para as paredes
Ou amarro meu turbante
Vem em forma de um cômodo vazio
De um lembrança cheia
Ou de um simples fumante
Alheio a tudo.
É súbita e aguda
Como quando a gente bate o dedo mindinho num canto
E são muitos cantos agora
E a dor não cessa nunca
Só se esconde entre risadas
E volta escancarada
Em lágrimas de saudade
Um quarto de século de vida
Três meses destituída
“Filha, deus te abençoe, muitos anos de vida”.
A dor vem
Eu engulo o seco e respondo
Para todo mundo
Obrigada, gente.
_______________
ANTÍTESE
(Jenyffer Nascimento)
Pediram um corpo escultural
Eu não tinha.
Quiseram uma mulher ignorante
eu já tinha lido o suficiente pra me proteger.
Sugeriram que não opinasse em assuntos de homem
Eu nunca consenti em calar.
Disseram que eu fosse esposa
Eu não quis casar.
Discursaram que as mulheres são frágeis
Eu não tive tempo de exercitar fragilidades.
Orientaram que não freqüentasse bares
Eu não pude negar as esquinas.
Quiseram controlar meu jeito de vestir e falar
Eu não vi sentido em deixar de seguir minhas vontades.
Apostaram que eu teria um subemprego
Eu vislumbrei ir mais distante.
Transaram comigo e depois fingiram não me conhecer
Eu aprendi a ignorar os imbecis.
Disseram que eu não amamentasse para o peito não cair
Eu amamentei até cair.
Submeteram meu corpo e meu psicológico à violência
Eu me juntei a outras como eu para superar.
Compraram vaidades para que eu me adequasse
Eu envaideci aprendendo palavras de ordem na luta.
Exigiram fidelidade e submissão
Eu rompi por amor próprio.
Cagaram mil e uma regras de conduta
Eu mandei pra puta que pariu
E sorri, feliz.
______________
(Lubi Prates)
ser mulher é uma bênção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande
ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
ser mulher é uma bênção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição
eu descobri agora que
não sou mulher
estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra
e o sangue que vem do meu ventre
permito que seja rio
que volte pra terra e
corro
nado
danço
descabelo-me
eu descobri agora que
não sou mulher
eu tenho pinto
apenas um seio
quadril estreito
nunca pari
eu descobri agora que
não sou mulher
ser mulher é uma bênção.
__________
identidade
(Ryane Leão)
foi uma mulher negra e escritora
de pele e alma como a minhai
que me ensinou
sobre os vulcões e as rédeas e os freios
sobre os tumultos dentro do peito
e sobre a importância de ser protagonista
nunca segundo plano
se você encostar a mão entre os seios
vai sentir os rastros de nossas ancestrais
somos continuidade
das que vieram antes de nós
eu sou um monte de
constelações
brilhando e ardendo
mas nem todo mundo
sabe ver
ou só vê a parte que arde
ou só vê a parte que brilha
você é uma frase bonita
dessas que a gente sublinha no livro
faz tatuagem, conta pra todo mundo
dessas que dividem a gente
em antes e depois
um dia
decidi ser eu
e nunca mais
voltei atrás
da vida
eu quero
poemas
orgasmos
almas entrelaçadas
batimentos livres
trocas sinceras
e revolução
___________
CALAFRIO
(Miriam Alves)
O sorriso gela
a porta do paraíso prometido
A tarde cobre-se de frio
grita
esconde-se atrás dos
casacos
faz esculpir aquela saudade
do lugar
jamais percorrido.
Escorrem feito sorvete
as esperanças derretidas
no ardor do querer.
_________
Raízes do porvir
(Domingos Florentino)
Trago a nódoa do passado
no punho do presente
transponho montanhas na minha luta
de juventude tragada
na convulsão dos tempos
em busca do Futuro
Trago a nódoa do passado
na serra dos dentes procuro paz
sobre o crepitar de corpos insepultos
na noite de tragédia
grávida de esperança
Trago a nódoa do passado
nas raízes do porvir
venho de longe
gritando meus anseios
em cansaços semeados
disperso no tempo
Trago a nódoa do passado
no cântico ao Futuro
planto amor
sobre o drama da flor violentada
no chão do meu País
__________
TAL QUAL CORDA BAMB
(Diego El Khouri)
eu atravesso oceanos
na calda de ninguém
mamute que destroça cimento
nos dentes de marfim no ouro de alguém
eles são fuzis
fezes
sangue coalhado de criancinhas famintas
acolhidas pelo crack
lembro muito bem
aquele inverno de 2004
porres incompletos, beijos frívolos
Rimbaud sobre a mesa
e paredes
muitas paredes
se fechavam cada dia mais
pela masturbação proferida a ti
naquelas madrugadas
de torcicolo brutal
eu agarrando estrelas
numa minúscula cama suja de sêmen e bílis
tal qual corda bamba
cometas em festa comum
ah madrugada!!
o que poderia dar a ti
se de mim roubaste tudo?
lamentaste a sina bandida
que és
levaste tudo embora
inclusive meus crimes
e as dívidas de mercado
para sucatear meus sonhos
que viraram cicatrizes na barriga
e apendicite supurado
são inconfundíveis
os olhos dessa terra
esses meninos nos sinais
a implorar migalhas
que a sociedade atropela
corpos descartados
deixados de lado
minoria nojenta
fede e tritura
qualquer pensamento
de libertação
ah madrugada
dos sonhos impossíveis
trouxeste a quimera que pedi?
quero sexo em ventre e alma
a tentação me veja como alvo
e me beije a face mil olhos
de vulcão, tempestade, estrelas
é tudo a mesma coisa
o mesmo cheiro
pelos, entranhas
língua na língua
descobrir teu corpo
alimentar tua sina
ó madrugada linda
que clareia meus olhos
és amor e paixão
misturadas com fogo e pele
nos marcaram como gado
trataram de espalhar nossas dívidas
nos apunhalaram pelas costas
e rasgaram nosso tratado
vilmente sem repeito algum
a nossa história
madrugada insonsa
covarde
as palmas de minha mão
cobrem orelhas
ajoelhado no centro da cidade
uma chuva torrencial
lava meus cabelos e minha alma
não há motivos para acreditar
no pai nem no estado
me fala a luz dos semáforos
repleta de mentiras e sonhos
não creio em inferno ou pecado
a poesia comportada
muito menos em gêneros comprados
porta voz das portas escancaradas
e venenos tóxicos
eu desafio as regras lambendo feridas
desconexas
do outro lado da moeda (!!!)
(ninguém me ouve, ninguém me vê)
assim espero.
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