segunda-feira, 31 de julho de 2017

SONETOS DO GLAUCO MATTOSO



SONETO REMONTANDO A 1951


Minha cronologia principia
no dia de São Pedro. De glaucoma
já nasço portador, mas, nesse dia,
só querem que se beba e que se coma...

Sou neto de italianos, e a mania
é dar diminutivos: no idioma
de Dante, sou Pierin. Me oferecia
um brinde o bisavô, que vinho toma...

Pierin, ou Piergiuseppe, dura pouco.
Já sou Pedro-José. O ouvido mouco
não é, mas um dos olhos já pifava...

Na foto, faço gestos algo obscenos,
unindo dois dedinhos: já pequenos,
mostravam a revolta: "Vão à fava!"


****

SONETO REMONTANDO A 1999

Me veio sem aviso: após o gozo
noturno, entre uma insônia e um pesadelo,
percebo que a memória é poderoso
recurso e que preciso conhecê-lo...

Sucedem-se os sonetos: volumoso
parece ser o veio... Em breve, o selo
Ciência do Acidente dum Mattoso
febril publica a praga, o berro, o apelo:

Entre uma "Centopéia" e uma "Geléia
de rococó", completa "Paulisséia
ilhada" a trilogia que hei criado...

Começa a nova fase, que não finda
nos mil, nem nos dois mil, pois muito ainda
virá calar quem quis me ver calado...

***

Soneto 49
Versátil

A crítica que tenho recebido
é quanto ao tema, não quanto ao formato:
"O Glauco trata só de pé e sapato,
ainda que use o molde mais subido."

Respondo antes de tudo por Cupido:
comigo ele jamais teve contato.
Além do mais, não vou deixar barato
que assunto algum me seja proibido.

Sou cego mas eclético, e versejo
acerca de problemas tão diversos
que nem forró, barroco e sertanejo.

De grandes e pequenos universos
é feito o pé que cheiro, beijo e vejo:
A Ele presto conta dos meus versos.

***



Soneto 73
Obsessivo

O gosto pelo pé ficou mais forte
depois que as trevas foram preenchendo
o fundo do meu olho, neste horrendo
martírio, mais agônico que a morte.

Agora nem desejo a mesma sorte
que alguns outros mortais prosseguem tendo
de conviver a dois, e só me entendo
servindo a qualquer sola de suporte.

Só penso nisso, em sonho ou acordado.
Masturbo-me na tímida ilusão
de amanhecer debaixo dum solado.

Aquele que em rosto dá o pisão
é sempre um tipo mal-acostumado,
e nunca a projeção duma paixão.

***



Soneto 26
Lírico

Dizem que o amor é cego e a carne é fraca,
mas só amei alguém quando enxergava.
Hoje a cegueira queima como lava
e o coração resiste a qualquer faca.

Ontem tesão, agora sóressaca.
Foi-se a paixão que fez minh'alma escrava.
Se inda me queixo dessa zica brava,
sou caçoado e passo por babaca.

Nem tudo está perdido: resta o cheiro
que invade-me as narinas quando passo
na porta do vizinho sapateiro.

Vá lá: o papel que faço é de palhaço.
O olfato é meu recurso derradeiro
e o cheiro do fetiche o único laço.

***


Ensaístico [241]

Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.

A nova não é casta, nem contrasta
com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.

Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:

Na universalidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.

***

 SONETO 274  PACIFISTA (GR)
Apelos pela paz são comoventes:
Parece até que toda a raça humana
ou quase toda, unânime, se irmana
na firme oposição aos combatentes.

Campanhas e cruzadas e correntes
envolvem muita mídia e muita grana,
mas nada se compara à força insana
do génio armamentista em poucas mentes.

Pombinhas, flores, nada disso importa
na hora da parada militar,
se acharmos que o perigo bate à porta.

A fim de protegermos nosso lar,
deixamos que haja tanta gente morta,
mas não aqui: só lá, noutro lugar.

***

SEGUNDO SONETO SÁDICO

      Nos “120 dias de Sodoma”
      o Mestre prioriza a merda pura,
      que consta do menu como mistura,
      e sempre há no banquete quem a coma.

      A merda é náusea em cor, sabor, aroma.
      Comê-la é só um requinte de tortura
      que põe papas e reis de pica dura
      enquanto o povo a prova em França ou Roma.

      Na época, o Brasil, colonizado,
      pagava a Portugal todo seu ouro
      e, em troca, o Alferes era esquartejado.

      No século atual, quem lambe o couro
      é o cego, num sapato já mijado
      e sujo até de letras do tesouro...”

***

SONETO 951 NATAL
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.

***

 SONETO ESCATOLÓGICO

      “Cagando estava a dama mais formosa...”
      Assim falou Bocage num soneto
      do mesmo naipe deste que cometo
      sobre a reputação que a merda goza.

      A crítica a compara à rara rosa
      se obrada na miséria dalgum gueto.
      Políticos proferem-na: “Eu prometo...”
      e a mídia a tematiza em verso e prosa.

      É tanto incompetente apadrinhado
      fazendo merda e sendo promovido
      que, quando comecei o aprendizado,

      pensei: “Que seja próprio o seu sentido,
      porque já me enojei do figurado!”
      E então fui rei da merda com que agrido.

***

PARA UMA DANÇA A DOIS

Um meia-nove é fácil que nem valsa.
Ficamos, eu p'ra cá, você p'ra lá.
Aqui na cama, o espaço sempre dá.
Espere eu só tirar a minha calça.

"Rancheira", antes chamavam. Está é falsa.
A verdadeira é "Lévis". Mas não vá
mudar o nosso assunto, porque eu já
estou notando o tênis que vê calça.

Na valsa, tinha até patinadores,
mas neste nosso rock é só botina
e tênis. Só variam, mesmo, as cores.

Papai-mamãe é chato, pois termina
depressa. Um meia-nove tem sabores
tão fortes quanto a meia ou quanto a urina.

***


SONETO 251 QUANTITATIVO

Centenas de sonetos são legado
de nomes tidos como monumentos.
Apenas de Camões, mais de duzentos,
registro que é por poucos superado.

Não fossem os Lusíadas o dado
que faz dele o primeiro entre os portentos,
ainda assim Camões marca outros tentos,
e, entre outros tantos, este é consagrado:

"Sete anos de pastor", o vinte e nove,
que, se não for mais belo, é o mais perfeito,
a menos que em contrário alguém me prove.

Mas, como dois é dom, três é defeito,
também um "Alma minha", o dezenove,
ocupa igual lugar no meu conceito.
***
Glauco Mattoso, pseudônimo  de Pedro José Ferreira da Silva, ( São Paulo, 29 de Junho de 1951) é um escritor brasileiro. 
Seu nome artístico é um trocadilho com glaucomatoso, termo usado para os que sofrem de glaucoma, doença que o fez perder progressivamente a visão, até a  cegueira total em 1995 . É também uma alusão a Gregório de Matos, de quem se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.

* Link das duas entrevisats que fiz com Glauco Mattoso: http://coletivozine.blogspot.com.br/2013/07/glauco-mattoso-o-poeta-da-crueldade.html

sábado, 29 de julho de 2017

ORO PARA OS ESPÍRITOS DAS ÁRVORES

Por: Edu Planchêz


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oro
para os espíritos das árvores,
emergido no mel, 
ajoelhado no pólen

oro
para os espíritos das árvores,
movido pelas correntes,
pelas alvas bocas
oro
para os espíritos das árvores,
escondendo estrelas nas mãos,
pássaros no umbigo
oro
para as árvores das árvores,
umedecido pelo vinho,
largado nos lajedos
oro
para os espírito das árvores,
amando o café,
perdido nas sementes
oro
para o espírito das árvores,
digno de coroas de transparentes,
de abraços aborígines

terça-feira, 25 de julho de 2017

5 POEMAS DO RAFAEL VAZ

Mais uma vez
vão embora todos do bar.
Levanto meu copo 
pela última vez e espero
que o mundo gire
e me tire para dançar
em um último suspiro.
Quando caminha-se diante
do precipício teme-se
que não consigamos
controlar o desejo insano
de pular ao infinito
do nada.
Conspirei as piores notícias
para que não pudesse
mais poder entender
o que se passava.
De todas as drogas as
que eles mais gostam,
é o dinheiro.


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Gênios surgem todos
os dias.
Buscam nas feridas a
essência de suas
genialidades.
O mundo vasto que
encobre cada coração
perpetua suas dores
e o público joga
cascas de bananas e
tomate.
Buscam no ego o
ponto fraco dos gênios
e deslizam-os para fora
das rodas.
Quando tudo se vai
terminam em suas casas
criando obras eternas para
que os que desprezaram-os
tomem conta dela
quando eles se forem.
O trabalho artístico é
uma merda visto pela
cabeça de um
professor universitário.


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naquele dia ela chegou
e já foi logo arrumando
a cama e dizendo
coisas enquanto arrumava
a cama.
então abri a janela pra
entender o que ela dizia.
que tudo era um inferno quando se
tratava de mim. ela dizia:
"você é um covarde."
desde 1992, quando no
hospital santo agostinho,
eu viria nascer.
eu diria a ela mais tarde que
as coisas são difíceis quando
se é um psicofrango.
ela ria.
eu agradecia por ela me suportar
por tanto tempo
mesmo quando estive longe.
as coisas quase nem sempre
eram do jeito que queríamos.
acendíamos um beck
e ela contavam sobre tudo o
que passava na tv,
enquanto em vão eu tentava
ignorar a tela.
tudo aquilo era uma terapia.


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Ela vira o corpo
em sentido a mim e
conta a última aventura
por qual ela passou.

95% das mulheres que conheço
não sente atração por mim.
Sempre fui um bom amigo.
Digo a ela que há tempos
torcia por ela.
E por isso toda vez que
que eu andava na rua
as pessoas mudavam de calçada.
Poemas de amor também
podem falar de quando
não se é amado.
Então você traga o beck
e joga toda a fumaça no meu rosto.
Incrível como eu viajo e
você continua intrigada com
o joguinho do seu celular.

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No tempo que
vivia na casa dos outros,
comendo com os outros
e esquecendo de mim.
Não corria pelos becos,
não gritava por aí.
Meu silêncio era seu.
Você tentou,
eu sabotei.
Você ficou,
eu fugi.
Os automóveis continuam
sem parar nas faixas de pedestres.
Um mosaico de cores
que vai embora junto
com o pôr do sol.


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quinta-feira, 20 de julho de 2017

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Por: Edu Planchêz

diego e o cachorro, 
o cachorro e o diego, 
satélites movidos 
pelo vórtice azul 
dos anéis amáveis do som



segunda-feira, 17 de julho de 2017

NÃO VOU ME RENDER

Por: André do Amaral

Não serei arrastado na lama que rompeu a barragem que impedia a barbárie.
O país não é só isso.
Para cada Gilmar Mendes, tem um Manoel de Barros.
Para cada Aécio Neves, tem um mestre de Congada resistindo à opressão nas mesmas terras mineiras.
Para cada Michel Temer, um Mário de Andrade na paulicéia.
O país não é só um branco de gravata ou toga.
É vermelho na pele indígena.
É preto potente na pele da menina.
É um guri, um piá, um curumim.
É trans!
É trem bão, é da hora, é sinistro, é massa! Ainda que não pareça, passa.
E eles passarão.
Desanima, não.
Menos preocupação e mais ocupação.
O país, novamente, está sendo saqueado. Seu povo pobre dizimado.Mas, até por uma questão de lógica, enquanto estivermos vivos não dá pra decretar derrota.
Minha energia.Meu pensamento e meu afeto se movem pela transformação e pela justiça social.
Para que pessoas não morram pela cor da pele.
Pela orientação sexual.
Por denunciarem injustiças.
Por serem quem são.
O país não é só o Planalto.
A injustiça suprema.
Homens asquerosos.
Um país reacionário.
Quadrado.
É também roda.
De samba.
De capoeira.
De poesia.
É uma espiral.
É a mata, os bichos, as ervas, a arte, o povo.Tudo que nele brota.
É uma idosa distribuindo sopa e cuidando de pessoas em situação de rua.
É uma benzedeira curando as crianças da comunidade.
É um professor mal pago e apaixonado mudando a vida de crianças e jovens.
É um poeta desconhecido.
Uma dançarina sonhadora.
Uma enfermeira incansável.
Um músico genial.
Um gari cantarolando enquanto varre.
Um garçom simpático.
Uma cozinheira incrível.
Um sábio pajé.
Uma mulher quilombola líder comunitária.
Uma criança alcançando o paraíso na amarelinha.
Um bando de gente linda e anônima.
O Brasil é imenso!
Desistir dele é deixar de perceber a beleza que nele contém.
Abrir mão da potência que dele provém.
Vamô junto!
Contra a perda de direitos e o desmonte do país, o lema do povo guerreiro:
"Só a luta muda a vida!"

quinta-feira, 6 de julho de 2017

JEAN-MICHEL BASQUIAT – ENTRE O CLÁSSICO E O UNDERGROUND

Por: Diego El Khouri



Eu não ouço o que os críticos de arte dizem. Eu não sei quem precisa de um crítico pra dizer o que é ou não arte.

Jean-Michel Basquiat


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Introdução

Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra artística de Jean Michel Basquiat ( Nova Iorque, 22 de dezembro de 1960 - Nova Iorque, 12 de agosto de 1988 ), fazendo um paralelo com o tempo em que viveu, as idiossincrasias de seu estilo de vida e predileções artísticas, comparando com outros pensadores e buscando através da analogia, tendo como alicerce os movimentos artísticos como o beatnik, surrealismo, pop arte, entre outros, reafirmar a ideia  que vida  e arte não pode dissociar.
Resultado de imagem para jean michel basquiat Native Carrying Some Guns, Bibles, Amorites no Safari



"não separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito".
Roberto Piva

“A imagem é consciência de alguma coisa”.
Jean-Paul Sartre; a Imaginação



Transeuntes trêmulos atravessando a cidade. Trânsito tenaz tácito da metrópole tensa/intensa/sagaz. Tabernas modernas de bares repletos de intensos transgressivos tatos/olhares: têmperas talhadas no tempo “la modernidad” temerária, transgressivas paisagens de tônica tormenta, tortas imagens, “torto translado do arado da morte” calcificadas em ferro e chumbo. Trépida turba talhada em transfigurados tripulantes nas trágicas faces desnudas da contemporaneidade. Tremendas loucuras, subversões infindas, crise financeira, drogas, miséria, luzes, crimes: Nova York no final dos anos 70 era um pandemônio de instabilidade monetária, violência, descaso, abismo — “o centro de Manhattan  atraia os estudantes de arte, os marginalizados, as almas perdidas. Todas as circunstâncias levavam à criatividade e inspiração. ”

Nova York se aproximava da falência. Os índices de criminalidade aumentavam. A miséria se transformava “em parte comum do cenário”. Pintores, poetas, escultores, músicos, artistas,  atravessavam a noite bêbada dos sonhadores na metrópole fratricida. A poluição reinava absoluta na cidade. Buzinas de carros e metrôs barulhentos. Boates em chamas. Olhares alheios. Nesse clima de instabilidade  propenso às grandes experiências  uma figura estranha se tornou o símbolo maior de uma geração e a imagem, mais uma vez, perpetuada do “clássico outsider”: Jean-Michel Basquiat — a vida veloz como  raio, intenso como fogo.

Seu trabalho, visto por alguns como “primitivismo intelectualizado”, uma “tendência neo expressionista”, começou pelas ruas, ao lado do artista gráfico Al Diaz, quando escreviam frases (com extrema  carga poética)  e assinavam Samo ou Same Old Shit (a mesma velha merda). Eram grafias diferentes do grafite tradicional: palavras com cunho irônico e por vezes até existencialista.
A película dirigida por Tamra Davis (amiga pessoal de Basquiat) intitulada The Radiant Child (considerada a obra  mais completa sobre Jean-Michel) e lançada em 25 de Janeiro de 2010 (título inspirado no primeiro grande artigo escrito sobre sua obra e assinado por Rene Ricard e publicado na revista Art Forum), mostra toda a ousadia e sagacidade desse artista ligado a ancestralidade e conectado sobretudo com a história da arte. No filme, seus amigos relatam que “ser multidisciplinado  era parte de seu sistema cerebral” e que depois da exposição  coletiva no ano de 1981 organizada por Diego Cortez  na P.S.I (que era um centro de arte contemporânea em Long Island, Queens) intitulada “New York/ New Wave” “a estrela de Jean-Michel Basquiat brilhava na constelação dos grandes artistas emergentes.” Seu trabalho está totalmente ligado ao seu tempo e consequentemente suas experiências pessoais nesse período tão conturbado da história refletem em seu trabalho.

O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980) no livro A imaginação (pág. 55), obra que procura “pensar a natureza a partir de uma experiência reflexiva”, acredita que “o papel da imagem na percepção não é de modo algum claro: não se sabem de onde nascem, segundo Bergson,  as representações primitivas. Em toda percepção complexa se inserem múltiplas imagens brotadas do inconsciente, as quais constituem ao mesmo tempo a imagem-percepção e a imagem-lembrança. Em certo sentido, portanto, em uma percepção há uma multiplicidade de imagens. Só que, se tomamos a imagem-percepção como unidade indivisa, a imagem-lembrança que lhe corresponde deve ser também tomada como uma unidade; e, se tomar como um composto a percepção mesma. Com mais razão ainda, as imagens primitivas têm exatamente o mesmo conteúdo e a mesma concentração que as percepções primitivas.” Basquiat trabalhava com “camadas de percepções”. No filme de Tamra Davis Jean-Michel diz “não saber definir” seu trabalho. Afirma que é o mesmo que perguntar ao Miles Davis como este explicaria o som de seu trompete. “A maior parte do tempo é automático”. Mas na realidade era um projeto pensado. Utilizando da técnica de cut-up desenvolvida pelo escritor americano William S. Burroughs (1914­—1997)  (“uma técnica literária não-linear na qual um texto ou conjunto de textos são cortados literalmente em pequenas porções que depois são rearranjadas de modo a criar um texto novo”), Basquiat ia definindo imagens intercaladas de frases aleatórias que no “instante do olhar” criavam unidade e por fim múltiplos sentidos. Burroughs se inspirou no surrealismo para criar essa técnica e de uma experiência com o artista inglês Brion Gysin (“cortou uma folha de jornal em pequenas secções e reordenou-as aleatoriamente. O poema Minutes to Go foi escrito através deste procedimento de uma forma não editada no verão de 1968”) . Trabalho este que ressoou em inspiração para inúmeros artistas, além do Basquiat,  como, por exemplo,  a banda de rock n’roll de Seattle Nirvana, que se utilizava do cut-up para criar suas letras enigmáticas.

Influenciado pelos artistas Cy Twombly, Willem de Kooning e Jackson Pollock, Jean-Michel Basquiat, não se limitava as referências no campo das artes visuais: Darwin, Aldous Huxley, Gregor Mendel, Muhammad Ali, entre outros aparecem em sua obra. Assim como o poeta maldito Arthur Rimbaud (1854-1891), Basquiat tem uma forte comunicação com a efervescência juvenil. “Cultuado pelos decadentes, simbolistas, existencialistas, beatniks, hippies, punks, revoltados de maio de 1968 e hardcores.”, sua pintura adquire cada dia mais modernidade, “retrato de nosso tempo”. “Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. — E encontrei-a amarga. — E insultei-a.” Rimbaud na obra Une Saison em Enfer (Uma Estadia no Inferno) acredita na força das cores e que cada letra equivaleria uma tonalidade diferente, o que definiu como “alquimia do verbo”. “O absurdo torna-se um valor poético como a dor e o amor. Aprofundando-se o absurdo do mundo, uma inaudita clareza  surge infinitamente mais luminosa. Lautréamont, Mallarmé, Saint-Pol-Roux nos ensinaram que é necessário penar longamente até que esta clareza chegue à consciência.” Basquiat começou criando arte em cartões postais, depois (devido condição financeira desfavorável) buscava na rua (ou no lixo da cidade pra ser mais específico) portas, janelas e qualquer coisa que estivesse uma estrutura mínima para criar algo no campo pictórico. A renomada galerista Annina Nosei, simpatizada pelo trabalho  do artista, o coloca no sótão da galeria  que fica na Prince Street, banca seu trabalho, e enfim passa a produzir suas primeira telas. Sua arte foi para outros meandros, Nessa época já tinha vivido a experiência de banda. Em 1979, junto com o artista performático Michael Holman, fundaram a banda “Gray”. Além deles participava do grupo Nicholas Taylor, Tomilho Justin e Vicent Gallo, que ficou na banda por um curto período de tempo. Era uma banda calcada na psicodelia, nos barulhos ensurdecedores, na melodia às avessas e no Bepop (estilo preferido de Basquiat e que representa uma das correntes mais influentes do jazz). Mesmo Basquiat não sabendo tocar direito o trompete o som tinha personalidade e fazia frente as vanguardas da época. As “pinceladas excêntricas” de Jean-Michel, as inúmeras personagens nas telas anexada lado a lado de grafias e palavras impactantes (por hora às vezes com tom irônico e ácido), a influência do jazz ( e sua improvisação) o movimento delirante do desenho das obras, o “do it yourself herdado dos punks, o interesse latente em hip-hop, basebol e boxe, mas também em poesia francesa, Leonardo da Vinci e  arte modernista,” a representação  exacerbada dos negros, vagabundos, miseráveis, “desajeitados de toda espécie”, compõe parte de seu intento artístico: misto de catarse e erudição.

O radiant child Jean-Michel, que tinha ascendência porto-riquenha por parte de mãe (Mathilde Andrada) e haitiana por parte de pai (Gevard Jean- Baptiste Basquiat), já aos seis anos, influenciado por sua progenitora,  frequenta o MOMA, Museu de Arte Moderna, de onde tinha até carteira de sócio-mirim. Essa primeira infância foi de suma importância para a concepção poética do seu trabalho. Obras como A Monalisa de Leonardo da Vinci e Vênus de Milo foram alguma das várias obras de arte representadas. Suas releituras além de mostrar sua ambição artística cravam seu estilo dentro de um processo pensado, assim como o italiano Amadeo Modigliani, outro outsider que tem uma conexão forte com os trabalhos do jovem Basquiat. A influência da cultura negra e oriental marca a “atenção visual” desses dois “cientistas da imagem” com elementos novos e diferentes do mundo ocidental que ainda nos dias atuais tem uma submissão visível a arte eurocêntrica. Modigliani que teve uma “existência atribulada, atormentada pela saúde comprometida desde a infância, e interrompida pela tuberculose aos  35 anos; a desmedida atração pelo haxixe, pelo álcool e palas mulheres; a  indiferença quase total da crítica e do mercado por sua pintura enquanto era vivo, desfeita já no dia seguinte à sua morte, pela atenção arrebatada dos colecionadores e o suicídio, de sua companheira, dois dias após a morte do artista, grávida de nove meses, e com uma filha de um pouco mais de um ano”, revelam, por outro lado, “uma obra perfeitamente concluída”, “de uma elegância aristocrática tão singular”, um certo equilíbrio e serenidade nas obras (contrário a sua vida pessoal), diferente de Basquiat que tem no ato artístico “a chama da loucura” e com traços rápidos, o abuso das cores primárias e sobretudo o vermelho, causando certa instabilidade no receptor, busca intensidade, desolação, e absorver em estilo, imagens, grafias e símbolos, o caos de sua geração “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante” (Nietzsche). Jean-Michel retratou muito o vagabundos de Nova York e mostrou o lado obscuro do american lifestyle. Segundo Rudiger Safranski, autor do livro Nietzsche, biografia de uma tragédia, na página 314, para esse “filósofo do martelo”, “a vida dionisíaca, que tudo abrangia, não era um fundo que tudo sustentava, mas um abismo ameaçador para nossas tentativas apolíneas de nos firmarmos.” Fazendo um paralelo com a vida boêmia  e desregrada de Basquiat (que reflete muito em suas pinturas), Rudiger acredita que Nietzsche abriu as portas para a impulsividade indômita da juventude onde “a vida está inteiramente entregue a si mesma, no coração de sua inquietação criativa e devoradora”. “Tornar-se sujeito significa violência contra a natureza externa e interna.” (Safranski; biografia de uma tragédia; pág. 315). Mas nesse contexto, “natureza é aquilo ‘que transcende  o círculo da experiência, o que é, nas coisas, mais do que o seu existir antes conhecido” (Adorno; Horkheimer 21).  Destruindo essa máxima kantiana de que a arte deve realizar-se de acordo com os arquétipos tendo a razão como fundamento de criação vinculada a idealização sublime do belo, notamos que é esse o fio condutor gerador de polêmicas que abrirá as portas da nova percepção visual. Antes de se produzir uma obra a ideia já está difundida no seu cerne e ela que é a geradora da arte nos dias atuais, mais do que a técnica ou os materiais utilizados. A violência do gesto na obra de Basquiat aponta novos caminhos que culminaria nas “novas linguagens artísticas”. Andy Warhol (1928-1987) percebeu toda essa potência e a parceria que fizeram na vida e na arte transformou mais uma vez o trabalho do jovem artista. De um lado, Warhol se sentia novamente animado em produzir (estava cerca de vinte anos sem pintar) e do outro lado, Basquiat via a possibilidade de visibilidade  e sentia orgulho de estar convivendo com o “papa  da pop art” e um das figuras mais importantes do século XX.

''...Nietzsche especula sobre a existência de um homem ''leve o bastante '' a fim de levar sua vontade de conhecimento acima de seu tempo sem , no entanto, ser esse impulso uma consequência de uma aversão a esse tempo...''
(Eduardo Nasser , '' As ilusões do eu_Spinoza e Nietzsche,''/ Civilização Brasileira-2011 ). A relação de Warhol e Basquiat, para alguns críticos, era, pelo menos no início, por puro interesse, mas o que de mais palpável podemos subtrair dessa relação é como a obra de ambos se entrelaçaram (era visível a influência de ambos nas pinturas dessa fase) a tal nível de evidenciar por fim uma ruptura abrupta levando cada um pra caminhos diferentes. As sutilezas em ambos é gritante. Nas pinturas do Basquiat, As palavras riscadas  tem um objetivo claro. Segundo o próprio artista “ele risca “as palavras para que a vejam  mais ainda: o fato de que elas estão obscurecidas faz você querer lê-las. A relação dos dois artistas visuais é retratada
no filme “Basquiat” (1996). A direção é de Julian Schnabel, com Jeffrey Wright como Basquiat e David Bowie como Andy Wahrol. Os dois artistas fizeram algumas obras em parceria. Segundo Jean Michel,  normalmente Andy começava e Basquiat finalizava.

Sartre já dizia que o espectador traduz o sentido da obra de acordo com suas próprias experiências. A galerista Annina Noise disse que  “ele sempre foi ligado às tradições romântica e gráfica nos Estados Unidos, como Warhol.” Mas “a linguagem de sua pintura se conecta com o modernismo clássico e o movimento COBRA (movimento artístico da vanguarda europeia, criada na Europa em 8 de novembro de 1948, influenciado pela arte popular nórdica, expressionismo e surrealismo, arte popular atuante entre 1948 e 1951,  embora reconhecido internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, na década de 1960). E completa dizendo que  “Jean-Michel tinha apenas 19 anos quando nos conhecemos e conversávamos sobre arte europeia e tradições clássicas em arte.”
Jean Michel Basquiat usava e abusava de sua liberdade de criação artística. “Basquiat significou, nas circunstancias da pintura nos anos 80, uma atitude de vanguarda e uma visão política do mundo, de certo modo engajado nas formas de pintar que significasse a urgência do retorno da figura do artista engajado e original.”  Niettzsche em sua obra Aurora fala em “reino da liberdade”. “Podemos pensar muitas coisas, muito mais do que podemos” (nota-se na pintura de Basquiat as inúmeras referências já citadas) fazer e viver — o que quer dizer que nosso pensamento é superficial e se satisfaz com a aparência, a ponto de nem sequer a notar (pág. 124); “Aquele que tem sede sente falta de água, mas seu espírito incessantemente diante dos olhos a imagem da água, como se nada fosse fácil de obter —“ (pág. Idem). “E assim o reino das ideias, em contraste  com o reino da ação, do querer e do viver, aparece como reino da liberdade: enquanto, não é mais que o reino superficial da ausência de exigências” (pág. 125). O experimentalismo foi base primordial de seu trabalho. Ernst Hans Gombrich, um dos célebres historiadores do século XX, no livro The Story of Art (A história da Arte), publicado pela primeira vez em 1950 em Londres, fala sobre o experimentalismo e como os artistas se manifestavam diante esse “mundo novo; “essa nova abordagem fez-se sentir em muitas partes do mundo, mas em nenhuma de um modo mais consistente do que na América, onde o progresso tecnológico era muito menos estorvado pelo peso das tradições. A incongruência de construir arranha-céus em Chicago e cobri-los com decorações provenientes dos livros de modelos europeus era evidente. Mas era preciso um espírito vigoroso e uma convicção clara para um arquiteto persuadir seus clientes a aceitarem uma casa inteiramente heterodoxa.” E artistas como Basquiat possibilitavam essa ruptura. A contra cultura foi o gás de inovação que se inicia no fim dos anos 1960 e se estende o reflexo até meados da década de 1980. Gombrich diz também que a análise de uma obra artística deve  partir “do que os artistas intencionam” e que estes estão “inscritos em um contexto específico”. Pra ele, a história da arte “é uma tela contínua, onde cada obra reflete o passado e aponta para o futuro”. Jean- Michel Basquiat com certeza representou seu tempo.


Conclusão


Jean-Michel Basquiat inovou em seu processo pictórico. Se relacionou com a cultura da rua e das galerias. Absorveu com muita propriedade a contra cultura e dialogou com grandes artistas de seu tempo.




Obras do artista Jean-Michel Basquiat:

Imagem relacionada

Autor: Jean- Michel Basquiat (1960 ­– 1988)
Título da Obra: Monalisa
Data: 1983
Dimensões 120  x 98 cm
Técnica: Diversa
Localização: Galeria Nacional de Las Marcas, Do Palácio Ducal de Urbino, Itália

Gênero: pintura 

Philistines, 1982 - Jean-Michel Basquiat

Autor: Jean- Michel Basquiat (1960 ­– 1988)
Título da Obra: Philistines
Data: 1982
Dimensões 120  x 98 cm
Técnica: Painel de tinta acrílica e a óleo sobre tela
Localização: Coleção do Sr. E Sra. Thomas E. Worrell Jr.

Gênero: pintura 



Autor: Jean- Michel Basquiat (1960 ­– 1988)
Título da Obra: Native Carrying Some Guns, Bibles, Amorites no Safari
Data: 1982
Dimensões 120  x 90 cm
Técnica: Painel de tinta acrílica e a óleo sobre tela
Localização: . Coleção de Hermes Trust (Cortesia de Francesco Pellizzi)
Gênero: pintura 

Exu, 1988 - Jean-Michel Basquiat

Autor: Jean- Michel Basquiat (1960 ­– 1988)
Título da Obra: Exu
Data: 1988
Dimensões 120  x 90 cm
Técnica: Painel de tinta acrílica e a óleo sobre tela
Localização: Coleção Aurelia Navarra
Gênero: pintura 

Resultado de imagem para jean michel basquiat Cortesia The Stephanie e Peter Brant Foundation, Greenwich,

Título da Obra: Sem título
Data: 1981
Dimensões 120  x 90 cm
Técnica: Acrílico, tinta spray e  óleo na tela.
Localização: Cortesia The Stephanie e Peter Brant Foundation, Greenwich, CTarra
Gênero: pintura 

Resultado de imagem para jean michel basquiat Acrílico, tinta spray e óleo na tela. Localização: . Coleção de Annina Nosei

Autor: Jean- Michel Basquiat (1960 ­– 1988)
Título da Obra: Sem título
Data: 1981
Dimensões 120  x 90 cm
Técnica: Acrílico, tinta spray e  óleo na tela.
Localização: . Coleção de Annina Nosei
Gênero: pintura 


Referências bibliográficas


SARTRE, Jean-Paul. A imaginação – editora L&PM Pocket, tradução de Paulo Neves. Porto Alegre, RS


GOMBRICH, Ernst Hans The Story of Art (A História da Arte) editora LTC; Rio de Janeiro, RJ


ADORNO, Thedor W. & HORKHEIMER, Max. Dialético do Esclarecimento (Fragmentos Filosóficos) – editora Zahar; tradução de Guido Antonio de Almeida; São Paulo, SP


NIETZSCHE, Friedrich. Aurora – editora Escala; tradução de Carlos Antonio Braga; São Paulo, SP

SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche, Biografia de uma Tragédia – editora Geração; tradução de Lya Luft; São Paulo, SP


PEKAR, Harvey; PETERS, Nancy J.; ROSEMONT, Penelope; BRABNER, Joyce;ROBBINS, Trina; KUPFERBERG, Tuli. Os Beats – Graphic Novel; edição original de Paul Buhle;  tradução de Érico Assis; Rio de Janeiro; RJ

NICOSIA, F.. Grandes Mestre, Modigliani – editora Abril Coleções;

MARSICANO, Alberto; FRESNOT, Daniel.  Rimbaud por ele mesmo – editora Martin Claret; São Paulo, SP

RIMBAUD, Arthur. Une Saison em Enfer (Uma estadia no Inferno) – editora Topbooks; São Paulo, Sp

DAVISA, Tamra. Filme: The Radiant Chilp. Ano: 2010

SCHNABEL, Julian. Filme: Traços de uma vida. Ano: 1996