SONETO REMONTANDO A 1951
Minha cronologia principia
no dia de São Pedro. De glaucoma
já nasço portador, mas, nesse dia,
só querem que se beba e que se coma...
Sou neto de italianos, e a mania
é dar diminutivos: no idioma
de Dante, sou Pierin. Me oferecia
um brinde o bisavô, que vinho toma...
Pierin, ou Piergiuseppe, dura pouco.
Já sou Pedro-José. O ouvido mouco
não é, mas um dos olhos já pifava...
Na foto, faço gestos algo obscenos,
unindo dois dedinhos: já pequenos,
mostravam a revolta: "Vão à fava!"
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SONETO REMONTANDO A 1999
SONETO REMONTANDO A 1999
Me veio sem aviso: após o gozo
noturno, entre uma insônia e um pesadelo,
percebo que a memória é poderoso
recurso e que preciso conhecê-lo...
Sucedem-se os sonetos: volumoso
parece ser o veio... Em breve, o selo
Ciência do Acidente dum Mattoso
febril publica a praga, o berro, o apelo:
Entre uma "Centopéia" e uma "Geléia
de rococó", completa "Paulisséia
ilhada" a trilogia que hei criado...
Começa a nova fase, que não finda
nos mil, nem nos dois mil, pois muito ainda
virá calar quem quis me ver calado...
***
Soneto 49
Versátil
Versátil
A crítica que tenho recebido
é quanto ao tema, não quanto ao formato:
"O Glauco trata só de pé e sapato,
ainda que use o molde mais subido."
Respondo antes de tudo por Cupido:
comigo ele jamais teve contato.
Além do mais, não vou deixar barato
que assunto algum me seja proibido.
Sou cego mas eclético, e versejo
acerca de problemas tão diversos
que nem forró, barroco e sertanejo.
De grandes e pequenos universos
é feito o pé que cheiro, beijo e vejo:
A Ele presto conta dos meus versos.
***
Soneto 73
Obsessivo
O gosto pelo pé ficou mais forte
depois que as trevas foram preenchendo
o fundo do meu olho, neste horrendo
martírio, mais agônico que a morte.
Agora nem desejo a mesma sorte
que alguns outros mortais prosseguem tendo
de conviver a dois, e só me entendo
servindo a qualquer sola de suporte.
Só penso nisso, em sonho ou acordado.
Masturbo-me na tímida ilusão
de amanhecer debaixo dum solado.
Aquele que em rosto dá o pisão
é sempre um tipo mal-acostumado,
e nunca a projeção duma paixão.
***
Soneto 26
Lírico
Dizem que o amor é cego e a carne é fraca,
mas só amei alguém quando enxergava.
Hoje a cegueira queima como lava
e o coração resiste a qualquer faca.
Ontem tesão, agora sóressaca.
Foi-se a paixão que fez minh'alma escrava.
Se inda me queixo dessa zica brava,
sou caçoado e passo por babaca.
Nem tudo está perdido: resta o cheiro
que invade-me as narinas quando passo
na porta do vizinho sapateiro.
Vá lá: o papel que faço é de palhaço.
O olfato é meu recurso derradeiro
e o cheiro do fetiche o único laço.
***
Ensaístico [241]
Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.
A nova não é casta, nem contrasta
com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.
Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:
Na universalidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.
***
SONETO 274 PACIFISTA (GR)
Apelos pela paz são comoventes:
Parece até que toda a raça humana
ou quase toda, unânime, se irmana
na firme oposição aos combatentes.
Campanhas e cruzadas e correntes
envolvem muita mídia e muita grana,
mas nada se compara à força insana
do génio armamentista em poucas mentes.
Pombinhas, flores, nada disso importa
na hora da parada militar,
se acharmos que o perigo bate à porta.
A fim de protegermos nosso lar,
deixamos que haja tanta gente morta,
mas não aqui: só lá, noutro lugar.
***
SEGUNDO SONETO SÁDICO
Nos “120 dias de Sodoma”
o Mestre prioriza a merda pura,
que consta do menu como mistura,
e sempre há no banquete quem a coma.
A merda é náusea em cor, sabor, aroma.
Comê-la é só um requinte de tortura
que põe papas e reis de pica dura
enquanto o povo a prova em França ou Roma.
Na época, o Brasil, colonizado,
pagava a Portugal todo seu ouro
e, em troca, o Alferes era esquartejado.
No século atual, quem lambe o couro
é o cego, num sapato já mijado
e sujo até de letras do tesouro...”
***
SONETO 951 NATAL
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
***
SONETO ESCATOLÓGICO
“Cagando estava a dama mais formosa...”
Assim falou Bocage num soneto
do mesmo naipe deste que cometo
sobre a reputação que a merda goza.
A crítica a compara à rara rosa
se obrada na miséria dalgum gueto.
Políticos proferem-na: “Eu prometo...”
e a mídia a tematiza em verso e prosa.
É tanto incompetente apadrinhado
fazendo merda e sendo promovido
que, quando comecei o aprendizado,
pensei: “Que seja próprio o seu sentido,
porque já me enojei do figurado!”
E então fui rei da merda com que agrido.
***
PARA UMA DANÇA A DOIS
Um meia-nove é fácil que nem valsa.
Ficamos, eu p'ra cá, você p'ra lá.
Aqui na cama, o espaço sempre dá.
Espere eu só tirar a minha calça.
Ficamos, eu p'ra cá, você p'ra lá.
Aqui na cama, o espaço sempre dá.
Espere eu só tirar a minha calça.
"Rancheira", antes chamavam. Está é falsa.
A verdadeira é "Lévis". Mas não vá
mudar o nosso assunto, porque eu já
estou notando o tênis que vê calça.
A verdadeira é "Lévis". Mas não vá
mudar o nosso assunto, porque eu já
estou notando o tênis que vê calça.
Na valsa, tinha até patinadores,
mas neste nosso rock é só botina
e tênis. Só variam, mesmo, as cores.
mas neste nosso rock é só botina
e tênis. Só variam, mesmo, as cores.
Papai-mamãe é chato, pois termina
depressa. Um meia-nove tem sabores
tão fortes quanto a meia ou quanto a urina.
depressa. Um meia-nove tem sabores
tão fortes quanto a meia ou quanto a urina.
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SONETO 251 QUANTITATIVO
Centenas de sonetos são legado
de nomes tidos como monumentos.
Apenas de Camões, mais de duzentos,
registro que é por poucos superado.
Não fossem os Lusíadas o dado
que faz dele o primeiro entre os portentos,
ainda assim Camões marca outros tentos,
e, entre outros tantos, este é consagrado:
"Sete anos de pastor", o vinte e nove,
que, se não for mais belo, é o mais perfeito,
a menos que em contrário alguém me prove.
Mas, como dois é dom, três é defeito,
também um "Alma minha", o dezenove,
ocupa igual lugar no meu conceito.
***
Glauco Mattoso, pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva, ( São Paulo, 29 de Junho de 1951) é um escritor brasileiro.
Seu nome artístico é um trocadilho com glaucomatoso, termo usado para os que sofrem de glaucoma, doença que o fez perder progressivamente a visão, até a cegueira total em 1995 . É também uma alusão a Gregório de Matos, de quem se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.
* Link das duas entrevisats que fiz com Glauco Mattoso: http://coletivozine.blogspot.com.br/2013/07/glauco-mattoso-o-poeta-da-crueldade.html
Fantástico! Estou a compartilhar os sonetos com meus amigos.
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