quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

A FORÇA MÍTICA DO CANGAÇO

— Percepções sobre a HQ Mulher-Diaba no rastro de Lampião, HQ escrita por Ataíde Braz e ilustrada por Flavio Colin 

Por: Diego El Khouri




O meu nome é Virgulino
O lagarto nordestino
Ouça bem o que lhe digo
O cangaço é meu quintal
Meu sobrenome é perigo

Sandro Kretus


     Justiceiro para alguns, bandoleiro para outros. A imagem agreste e desoladora do nordeste. Bela por si só e rica em cultura e história. Óculos de 15 quilates na face queimada pelo sol. Cabelos à altura dos ombros. Aproximadamente 1.79 de altura em um corpo magérrimo. Fala mansa. Exímio sanfoneiro nos acampamentos. Poeta de olhar febril e intenso. Dançarino das rodas de boemia. Em alguns momentos era rápido e em outros momentos, devagar. Dedos enfeitados com anéis de ouro. Armado até os dentes. Estilista de sua imagem. Cabra macho e amante de belas mulheres. Justiceiro e politicamente incorreto. Religioso e supersticioso. A imagem mítica de um Brasil que se perdeu, ou melhor, se esqueceu de sua própria história.
O cangaço (que é o “nosso parnaso no universo”) trás em si características marcantes e que foi muito retratada pelo cinema. Quem não assistiu, por exemplo, o filme “O auto da compadecida” dirigido por Guel Arraes e baseado na obra do Ariano Suassuna? Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, carrega em seu peito a aura cultural do Brasil.
     Mulher-Diaba no rastro de Lampião, HQ escrita por Ataíde Braz e ilustrada por Flavio Colin retrata de forma fantástica todo esse mundo repleto de poesia, violência, magia e intensidade. O traço do desenhista parte de sutilezas, recriação do espaço, geografia e poética. A dita “língua errada do povo” perpassa pela obra dando uma carga fidedigna ao trabalho. Bom mesmo é a “língua errada” do povo, já o que fazemos é “apenas macaquear a sintaxe lusíada”.
     Colin acredita na pesquisa. Acha inclusive que é fundamental para se criar qualquer tipo de arte. Segundo ele, “a pesquisa te leva, não só a valorizar o trabalho e passar uma informação mais precisa e correta, como também a aprendemos. É subsídio para nossos futuros trabalhos”. Há um diálogo forte nessa HQ em parceria com Flavio entre o verbal e o visual. A expressão dos personagens (mesmo utilizando muito pouco de rachuras e sombra) dão uma toque expressivo para a obra. A falta de sombra tem justamente essa ideia: o clarão abraçando todo o espaço, um sol escaldante e característico do ambiente em questão. O Nordeste representado pela realidade e pelo sonho. O onírico é um dos tentáculos que os roteiro se utiliza muito bem ao longo da narrativa. Uma tendência cada vez mais forte entre os quadrinistas nordestinos, como por exemplo, Bruno Marcello, Rodrigo Xavier e leandro Moura.
Outra característica importante e que vale ressaltar é a influência do cinema nos traços dessa HQ. No primeiro quadrinho da página cinco fica bem claro isso. Aquela cena dos cangaceiros sobre seus cavalos, armados, de frente a uma casa, é uma imagem recorrente nos filmes inspirados no Lampião e também nas películas produzidas nos Estados Unidos que representam o faroeste, filmes estes também chamados de cinema western (que significa “ocidental”) e que refere-se a fronteira do Oeste Americano durante a colonização. Região também chamada de far west (extremo oeste). E a narrativa vai se construindo dessa forma. Os enquadramentos, as vestimentas da personagens, o jogo forte de luz sobre todo o papel, as onomatopeias (que resgata a tradição do estilo nas produções impressas dos gibis), o movimento voraz das cenas, a geografia da caatinga, que é um bioma exclusivamente brasileiro, marca a obra Mulher-Diaba no rastro de Lampião como trabalho genuinamente nacional (um tipo diferente de contar histórias e que pode sim atingir outros locais fora do país).
     O fantástico assume caráter mitológico quando este retrata o mágico delirante que dança na mente das pessoas do local. Nesse sentido, a cultura está no cerne da questão. O mágico e o fabuloso tem uma áurea genuína. Nele o “abstrato real” cria camadas de poesia e as metáforas contam histórias. Histórias com um fio condutor que unem as crenças, os olhares e as sensações. A HQ é feliz nisso. Nessas sutilezas que perpassam o imaginário humano e, principalmente, esse imaginário dentro de uma cultura determinada cria potência e é um resgate certeiro na ancestralidade. A hemoglobina dança sinuosa no ósculo vertiginoso da pretérita memória presente de um passado que nos une como cidadãos de uma mesma orbe.
     Ler Mulher-Diaba no rastro de Lampião é mergulhar na nossa própria história.

Um comentário: