terça-feira, 27 de agosto de 2024

Rosa Kapila (1952-2024) - a literatura que se eterniza

  Por: Diego El Khouri 



A escritora Rosa Kapila fez enfim sua passagem. Abandonou o corpo, roupa emprestada para caminhar nesse mundo louco e, por vezes, perverso. Essa querida amiga, doutora em literatura na USP e com uma quantidade imensa de livros publicados, faleceu no dia  25 de Agosto de 2024 (conseguindo enfim ser enterrada apenas uma semana após sua morte - esses detalhes de um país que não valoriza seus artistas ) numa morte bem estranha e que merecia ser investigada. Não irei fazer nenhuma acusação porque o caso é complexo, mas que mexe muito comigo devido as circunstâncias que ocorreu. Mas agora é o momento de registrar sua imensa contribuição nas artes e na educação, professora dedicada que foi até o dia de sua merecida aposentadoria.

Conheci essa combatente literária em 2012, ano que me mudei para o Rio de Janeiro, capital da boemia. Eu já tinha perambulando nessa cidade contraditória em 2010 para conhecer o mano Fabio da Silva Barbosa, editor do zine Reboco Caído e o maluco que criou comigo a lisérgica punk Editora Merda na Mão. 

Essa segunda ida a essa cidade foi a convite do poeta músico Edu Planchêz Maçã Silattian. Ele tinha postado no YouTube um vídeo recitando um texto meu chamado "Manifesto em favor da poesia Marginal" (https://youtu.be/6j6KJA2MpVs?si=ZWNTE_WaLYKIi0ZT ) e nessa postagem Edu fazia a convocação: que apareça o autor(!). E durante 1 ano ficamos "nos procurando" (eu tinha visto o vídeo,  mas não sabia quem era o edu e vice e versa). Cheguei em 2012 no Rio, doente, fudido, alucinado, quase fui assassinado em São Paulo durante a viagem (em breve vou escrever com detalhes essa saga louca que vivi)... Mas fui muito bem acolhido por esses queridos irmãos de ofício. Eles contribuíram pra que eu saísse do inferno mental e físico que   naquele período tão pesado da minha existência estava soterrado! Rosa é ex esposa do Edu e mãe de seu filho, o Ícaro Odin.

A última vez que vi a Rosa foi  em um sarau no ano de 2014 organizado pelo ator Paulo Beti e pelo jornalista Paulo Maia no teatro da Gávea. Nesse dia meus quadros  fizeram parte do cenário do palco e muita gente foda se apresentou nessa noite: Jards Macalé (no qual fumei um baseado com ele), Ava Rocha, a banda Blake Rimbaud (que tem o Edu como cantor, compositor e idealizador) , a Rosa Kapila, entre outros. 


Ela deixa um legado importante. Recomendo que procurem sua vasta obra literária nas livrarias, sebos e internet.



Abaixo deixo alguns de seus poemas:



SE FECHO OS OLHOS FICA DE NOITE 

Olho a chuva de minha janela do quarto.

Um lençol de nuvens escuras cobre o Cristo Redentor

Como a chuva é linda.

Se não fossem as velhas fadigas...

Eu quero a boca do paraíso.

Vi um bicho pulando com seu terceiro pé

/depois, ele salta em cima de vidro pisado

Sempre fui iludida pelos mitos.

Sofri.

As línguas dos mares me deixam esbodegada

Avanço... arrastando-me

O bicho voa.

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VULTO DO CREPÚSCULO


Canto para um vulto do crepúsculo

/ e penso que você me ouve

Tenho nas mãos suaves contas

/ com as quais vou fazendo um colar

Do outro lado de mim uma latinha com uvas pretas.

O coração, parece que está no lugar... pelejando

Estou sentada na areia de uma praia

/ ondas frenéticas tentam me banhar.

Como a noite vem caindo, cavo um buraco

/ na terra e coloco os caroços das uvas.

Minha boca areada olha para o céu.

Os grãos de areia que permanecem em meu corpo

/ seguem comigo pela Vieira Souto.

Ao longe eu o vejo, é ele o vulto do crepúsculo.


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NO DIA EM QUE EU  ECLIPSAR-ME

“Dou o nome de violência a uma audácia

em repouso apaixonada pelo perigo.”

( Jean  Genet. In: Diário  de um  ladrão )



No dia em que eu  eclipsar-me

Minha faca vai: cortar o fogo.

Virarei uma víbora com dentes iguais

/aos da onça que fuma  em meu sonho.

No dia em que eu eclipsar-me

/vou dar portada na cara.

De sangue no olho

/vou queimar essa civilização de papel.

No dia em que eu eclipsar-me

/vou  cortar teu couro tão bem cortado

/que nem Deus vai conseguir costurar.


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EU SOU UMA NAVALHA E CORTO MEUS AMORES

“Contemple a sua amante  - Pedra!”

( Hart Crane. In poema:  Medusa. )


EU SOU UMA NAVALHA

E CORTO MEUS AMORES

EM MINHA AUTO-APRECIAÇÃO INGÊNUA.

PRECISO DE UM PEIXE-VELA

PARA SUBSTITUIR   TODAS  AS LUZES

OU UM  VAGA-LUME

A MAIS SIMPLES  DE TODAS

AS LÂMPADAS  NATURAIS

TUDO POR UMA LUZ

TORNAR A NOITE TOLERÁVEL!

SALTO DO PENSAMENTO

TRAÍDOS SOMOS

ENQUANTO DORMIMOS

SÃO AS AÇÕES  DAS TREVAS

SOU  HABITANTE DE UM ELEMENTO

ESTRANHO

FILHA DE UMA ESCOLA  NOTURNA

COMO SERÁ QUE FOI A VIDA NOTURNA

ANTES  DA ELETRICIDADE?

PULEI PRA NOITE

QUANDO AS HORAS  DO DIA

FORAM   FICANDO CONGESTIONADAS

PARA MEU BEL PRAZER

PASSEI A VIDA INTEIRA

CONQUISTANDO A NOITE

MUNDO SEM SOL

QUE ME VENHAM TODAS AS VELAS

GOTEJANTES!


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( POEMA DE ROSA KAPILA )


Taiguete no caminho dos hibiscos




O cheiro fica pra mim mesma


O libreto molhado para Taiguete de tranças


Duas bruxas perigando voar.


Exauridas.


Quanto mais insuportável


Mais cedo o poema vai saindo.


Cisco no olho no caminho da floresta


/ e fantasmas nos arruínam em gritos aloprados.


Medo no turbante que veio de Angola.


Parecem palmas à distância


/ ou uma ceia com rabanadas.


Pássaros enchem a barriga


Os jacarés vomitam uma gosma verde.


As folhas são lindas e nos ouvem


Temos pratos, panelas e um cão amigo


/ porém sinto cheiro de bife.


O viajar do olho: floresta dos hibiscos


Taiguete corre e começa a cavar


/ arranca seus livros enterrados


As vestes dos livros estão imperecíveis.


A amiga teria aprontado alguma feitiçaria?


Penso em ciclopes


O mar habitando a poucos quilômetros


/ fogueiras, o bife na salmoura, princesas, mamão


/papaia, trevas, algum abutre pulando em minha lombar


Os hibiscos estão abertos, cheirosos.


Os livros, fechados e amarrados.


Mais poemas no blog: http://rosakapilaescritora.blogspot.com/

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Livro que ganhei da Rosa Kapila em 12 de Agosto de 2012:







Rosa Kapila, contista piauiense, é autora de 13 livros de ficção - Primeiro manuscrito das tentações, Pulso de lamê, Papik o menino que nasceu na neve, Quando mamãe souber, O agito dos amores dentre outros. Premiada pelo MEC/Unesco com o livro Felizes são os gatos. Doutorou-se em Literatura Brasileira (com tese em Mário de Andrade) pela Unesp de Rio Preto. Professora Universitária aposentada.


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