quarta-feira, 9 de março de 2011

OFTALMOCONTO

(Por Alexandre Mendes) 
Contou os passos até o banheiro, se posicionou em frente à privada e urinou. Era cego, mas não de nascença. Uma pancada forte em sua cabeça, ocasionada por uma queda na infância, lhe privara da visão. Há muito tempo não fazia idéia do que era a luz do dia e todos os lugares que ele frequentava já eram previamente conhecidos. Contava os passos até os destinos desejados e orientava-se com seu bastão pelas ruas. Seu ouvido apurado tornou-se fundamental para sua locomoção.
Sua mãe, carinhosa e prestativa ao rebento, tratava-o como criança, mesmo após sua recente chegada na casa dos trintas anos. Auxiliava-o nas tarefas diárias e buscava a cura para seu problema, incansavelmente:
– Filho, confio em Deus e nos médicos! Com certeza você voltará a enxergar.
Apesar das dificuldades, o rapaz não reclamava da vida, pois a humanidade a sua volta estava sempre pronta a ajudá-lo em suas necessidades. Ia atravessar a rua e escutava: "Coloca a mão no meu ombro para que eu possa lhe guiar" ou então, andando pela calçada ouvia: "Desvia... cuidado com o buraco!"
Entretanto, ocorriam fatos isolados que ele não sabia o que realmente representavam, como o tilintar de moedas em uma esquina na qual sempre passava. Sua imaginação fértil levara-o a crer que talvez fosse um estabelecimento que usasse tal som a fim de convidar os clientes ao consumo. Outro fato que o deixava curioso era um grupo mirim de circo que se apresentava em um sinal de trânsito, no seu caminho. Frequentemente, um dos meninos o ajudava a atravessar a rua e durante o trajeto de uma esquina para outra, lhe revelou a atuação do grupo. Seu mundo real dividia o espaço em sua mente com um mundo imaginário.
Certo dia, sua mãe lhe trouxe uma boa notícia: o havia inscrito em uma cirurgia experimental, pela qual, possivelmente, recuperaria sua visão. Houve uma grande euforia. Entre gritos extasiantes e lágrimas escorrendo pelas pálpebras inúteis, o rapaz percebeu que não se lembrava de como era o mundo a sua volta, pois tinha apenas três anos quando havia ocorrido o acidente que o cegara.
Compareceu no dia marcado à sala de cirurgia e, um pouco antes de sentir a anestesia tomar conta de seu corpo e mente, foi tomado por dois sentimentos: o medo e a alegria invadiram seu ser. Algumas horas depois a operação foi realizada com sucesso. O tempo esperado por ele para a realização da cirurgia, somado à burocracia na saúde pública brasileira foram vencidos pela persistência do ex-deficiente visual.
Os dias seguintes foram fundamentais para sua recuperação. A ansiedade tomou conta de si durante todo o período, mas não o abateu por completo. Sabia que o dia em que voltaria a enxergar estava próximo. Achava incômoda a tala que envolvia sua cabeça na altura dos olhos, mas um flagelo necessário para se alcançar a felicidade. 
Quando chegou o grande dia, mal podia se conter. A tala intumescida pelas lágrimas foi retirada e o ex-cego pôde, finalmente, reconhecer a sua mãe. Um abraço apertado e demorado foi seguido por diversas perguntas, como qual era o nome das cores que ele começava a observar. Não satisfeito com o que aprendera, o rapaz decidiu fazer o percurso cotidiano, a fim de desvendar os diversos mistérios do caminho. Viu carros e pessoas em movimento. "Impressionante", pensou. A cada passo que dava, uma novidade descobria.
Alcançou a tal esquina em que escutava o tilintar das moedas e seu semblante esfumou-se. Com o corpo e vestes imundas; pele enegrecida pela sujeira; cabelo desgrenhado e odor fétido, encontrava-se, sentado na calçada, um mendigo cego. Imóvel como uma árvore seca, o único esboço de movimento que o infeliz reproduzia era o sacudir de uma lata na mão esquerda, tilintando moedas em seu interior.
O choque com a realidade o assustou. Jamais havia presenciado tamanha cena deprimente. "Um homem cego nessas condições! Como deve ser difícil a vida para ele."            
Afastou-se ligeiramente e prosseguiu seu rumo. Procurou esquecer o desgraçado que padecia na calçada. "Vou ver o tal circo mirim no sinal. Vai ser animador." Alcançou o tal semáforo e suas pernas paralisaram. Engoliu a seco e não acreditou no que viu: o sinal fechou e logo foi tomado por crianças seminuas, portando caixas de chicletes e pacotes de mariola, implorando por uma migalha a homens de terno em carros de luxo. Observou atônito, os vidros elétricos se fechando diante dos narizes que escorriam. De repente, uma pequena mão segurou na sua:
– Bom dia, moço! Deixa eu te ajudar a atravessar a rua – disse um menino de aproximadamente dez anos. Reconheceu a voz do garoto como aquela que lhe iludira com a estória do circo. Olhou para os seus pés sujos de poeira asfáltica. Suas pernas eram cobertas de relógios. Portava em sua mão direita três pequenas limões, instrumentos básicos para sua sobrevivência.
– Ué! O senhor tá me enxergando? – perguntou o pequeno miserável ao rapaz que, estupefato pela cena, largou sua mão e correu como um louco de volta para casa.
– Mãe! Mãe! Socorro! Quero voltar a ser cego!

2 comentários:

  1. Muito bom. Alguns não vêem porque não conseguem, outros não vêem por que não querem.

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  2. Volta e meia a gente esbarra em alguma coisa.

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