terça-feira, 8 de agosto de 2017

POEMAS DE RAUL SEIXAS (1945-1989)

Eu Preciso de Ajuda

Para todos os insonemaníacos da Terra
Eu quero construir um tipo novo de máquina
Para voar de noite saindo do corpo
Ela ganhará prêmios de paz, eu sei disso
Mas eu mesmo não posso fazê-la
Estou exausto, eu preciso de ajuda

Admito meu desespero, eu sei
Que as pernas em minha pernas estão tremendo
E o esqueleto quer sair do meu corpo
Porque a noite de pedra já está concreta
Eu quero alguém para içar uma imensa roldana
E içá-la de volta sobre a montanha
Eu preciso de ajuda

Porque eu não posso fazer isso sozinho
Está tão escuro aqui fora
Que estou cambaleando
Rua abaixo como bêbado
Se bêbado não sou, talvez aleijado
Eu preciso de ajuda.

Poesia Sem Título (1981)

Papel de presidente dos USA
De Reagan seu melhor papel
Enquanto a conta aumenta, Brasil
A Amazônia ainda aguenta
A Rússia não quis emprestar
Dinheiro em troca de um campo de aviação
São doze pistas de pouso
E, em troca de ouro, prata e carvão

Se eu falo é tupi-guarani
Que lindo sotaque o daqui
O português é puro Latim
Nada de tupiniquim
Nada de Rio Ipiranga
Nem de margens plácidas
Precisou um portuga, xará
Pra gente estar no ponto que está.


Areia da Ampulheta (1981)

Eu sou a areia da ampulheta
O lado mais leve da balança
Cão vira-lata amordaçado
Fusca entre cadilacs
Morador do lado errado
Revólver de espoleta

Mais um do bloco dos sabotados
Da trovoada o pára-raios
Dos trovões
E lá vou eu , examinando
espionando
Vou tachado
Sou pesado - empacotado
rotulado
lacrado e despachado
numerado e condenado
censurado e ultrajado
Meu povo!
Como nos deixamos cair
em tamanha abjeção??


Poesia Sem Título (1981)

Enquanto o galo canta
De madrugada
O cigarro queima
No cinzeiro , a mosca
Zumbe no silencio quarto
Onde minha mãe trêmula
Escreve o que me requer
No papel em branco
Duma frágil culpa
Duma consciência barata tonta
Cheia de moinhos para fazer girar...
Minha filha dorme.


Magia de amor

Me fascina tua morte mal morrida
E a tua luta pra ficar em tal estado
O teu beijo, tão fatal, nunca me assusta
Pois existe um fim pelo sangue derramado

Me fascinam teus olhos quando brilham
Pouco antes de escolher quem te seduz
E me fascinam os teus medos absurdos
A estaca, o alho, o fogo, o sol, a cruz

Me fascina a tua força, muito embora
Não consiga resistir à frágil aurora
E tua capa, de uma escuridão sem mácula

Me fascinam os teus dentes assustadores
E teus séculos de lendas e de horrores
E a nobreza do teu nome, Conde Drácula

Sangrilégio (1970)

Eu acordo de madrugada
Eu acordo com quase nada
Areei meus dentes
Penteei os cabelos
Enxaguei meu rosto inchado
Me armei da 007
Me meti no paletó
Quase me enforquei no nó
Da minha gravata
Um beijo na minha mulher
E dezessete beijos e meio
Um em cada filho meu
Meninada que eu tenho estima e afeição
Eu sou bancário
Meu banco é de sangue
Eu sou bancário
Os olhos de Drácula
Pousam sobre mim
Firme , na escuta do PBX.

Poesia Sem Título (1972)

Eu não pertenço ao domingo ensolarado
Meu pijama branco e largo
Que eu arrasto pela sala
Pela sala de jantar

Já não m`importa , o que m`importa nesse instante
É o meu vagar constante
Sob o peso dessa estante
Que eu vasculho até dormir

Meu quarto escuro sob os olhos de coruja
Boca seca e roupa suja
O coração se enferruja
Ao contato do verniz

Eu não pertenço nem à flor nem à espada
Tenho é u`a fome desgraçada
Minha cara engarrafada
Mais parece um guaraná


Poesia Sem Título (1979)

Quero que venhas depressa
O tempo é pouco
Careço de partilhar meus delírios com você
Conheço lugares jamais penetrados
Misto de poeta e pirata
Só os loucos são capazes de voar
Não tenhas receio de mim
Quero Te levar aonde estou
Como poderei mentir-lhe
Se eu sou somente o que sou?


Esse Negodiamô


Sem concepção de tempo,
O papel já terminou
Você vê que nada ficou
Sem poder dormir você pensa em fugir
Mas não há pra onde ir

Lá trancado no porão
Que é escuro mas é clara sua visão
Daquilo que você tanto esperou
Não passava de um sonho
Sobre esse negócio de amor
Doeu na hora que você acordou
Ao som agudo de um despertador
Mais barulhento que o apito
Do guarda abrindo o sinal.

Você procura entender,
Sabendo que não há porquê
Tudo é apenas o que é
Vai morrendo firme em pé
Você vê que não sabe de nada
Você louco e ela calada
Ela foi linda e clara esta noite
Inevitável, claro o açoite
E a dor foi mais que demais

Tudo que cê aprendeu desde que você nasceu
Embora sempre cê desconfiou
Que a gente é gente e é isso aí
Mas no entanto cê esperou
Sei lá, um milagre ou coisa assim
De repente o punhal
Mostrando as frestas do que é
Aí se entende o que é morrer
Estando vivo pra saber
Que cê não passa de um guri

Sua mente flashbacka atrás
aos catorze anos ou pouco mais
As meninas coloridas de batom
de rouge de risadinhas freteiras
Eram todas tão iguais
Sempre elas e sempre o rapaz
Transbordando de amor
Preferi ser escritor sem mesmo sequer saber
Que eu também queria amor
Como um susto bem pregado
De repente vi que tinha esse negócio mesmo
De estar apaixonado
Vi o mundo do outro lado

Tudo tão certo e tudo tão errado

Óculos Escuros

Esta luz tá muito forte
Tenho medo de cegar
Os meus olhos tão manchados
Com teus raios de luar
Eu deixei a vela acesa
Para a bruxa não voltar
Acendi a luz de dia
Para a noite não chiar
Já bebi daquela água
Quero agora vomitar
Uma vez a gente aceita
Duas tem que reclamar
A serpente está na terra
O programa está no ar
Vim de longe, de outra terra
Pra mirder teu calcanhar
Esta noite eu tive um sonho
Eu queria me matar
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio usa óculos escuros
Quem não tem papel dá recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro!

Vivian (Maio 1981)

Os olhos verdes que não puxaram a seus pais
Perninhas grossas no molde bem-feito da mãe
No mês de maio entre as flores nasceu ViVian
Em casa seu nome é "pipoca"
De tanto aprontar
Talvez muito dengo da vó e do Beto
Só quer a quentura do peito e do braço da mãe
ViVian!
Antes de ser batizada sorri para os anjos do céu
Do céu, da sua boca pequena
Com cheiro de flor igualzinha ao pai
da Vivian!
Fica zarolha olhando,
Aprendendo o que olhar
Fralda borrada, uma outra golfada
e um gargalhar...
Riso banguelo e eu me acabo de lhe amar
ViVian! oohh ViVian.


Para O ESTADÃO (1983)

Está na praça, já chegou
O dicionário do censor
Desde A até o Z
Tem o que você pode ou não dizer
Antes de pôr no papel
O que você pensou
Veja se na sua frase
Tem uma palavra que não pode
Você não queria assim... mas que jeito?
O dicionário do censor
É que decide , não o autor
Um exemplo pra você
Se na página do "P"
Não consta a palavra "povo"
É porque essa não pode
Vê se no "o" tem escrito "ovo"
Ovo pode...
Se o sentido não couber
Esqueça , risque tudo, compositor
Seu dever é decorar
As que pode musicar
No dicionário da censura
Nem botaram "dentadura"...



Pai Nosso da Terra (1981)

Pai nossa que estais na Terra
Simplificado seja o vosso nome
Está em mim o vosso reino
Que seja minha a vossa vontade
Bendito ou maldito
Se o que eu mato eu como
O pão nosso de cada dia
Dai sempre ao bom merecedor
Não perdoai ao devedor
Nem livrai o fraco do mal
Com vosso poder habitai na alma dos fortes
Senhor da máfia, deus dos deuses!
Pai nosso da Terra
Nada vos imploro, nada vos rezo
Mantende comigo vossa espada
Pai nosso da Terra!
Livrai-me da maldição dos fracos
AMÉM.



Eu Sou Apaixonado Por Você (1983)

Você não se penteia nem se pinta
- Eu sou apaixonado por você!
Você futuca a cara de espinha
- Eu sou apaixonado por você!
Você emagrece d'uma hora pra outra
- Eu sou apaixonado por você!
Engorda quando come macarrão
- Eu sou apaixonado por você!
Você é moça e tem bigode
- Eu sou apaixonado por você!
Você me crobra caro o seu amor
E nem é do tipo que eu gosto
- Eu sou apaixonado por você.

Poesia Sem Título (1984)

Estou sofrendo
Não compreendo nada
Nada me motiva
Tudo são repetições
Continuo bebendo
Estou infeliz
Preciso de alguém que acredite em mim
Não sei o que é ter fé
ordem , autoridade ou verdade
Respostas - perguntas
Três esposas vi partir
Não gosto de mim
não acredito em mim
Um vazio enorme
Inseguro
Solitário
Incapaz de lidar com o cotidiano
Cansado de ser
autodestrutivo
Desesperado
Tendências suicidas
Odeio meu rock`n`roll
penso em morrer...

Apesar dos Pesares (1887/1988)

Vou gostar de você
Como gosto do mar
Mergulhar em você
Me perder
Me encontrar.

Ai, como é linda essa vida
Apesar da miséria
Apesar dessa fome
Aquele beijo com gosto de coca
O meu coração bate e toca
Vale a pena viver.

Poesia Sem Título (1988)

Você roubou meu videocassete
E disse que foi um assalto
Você não quer deixar minha casa
Dizendo que empatou quatro anos de sua vida
Trabalhando como esposa.

Estão é assim que você se revela
Você nunca foi fiel a si mesma
Gênio ou poeta a sua fotografia
Vai se revelar na grande mentira que você é
Pra você mesma
Só você mesma sabe que não tem talento pra vida.

De Bom-Tom

O guia cita Caetano
Mostrando Santo Amargo,
as mãos em círculos
Tão dolente
Tão emoliente
Sob a chuva leve,
que filtra
É a água estelar destes versos
Murmura fluxo irrevogável
"Então, Senhor , Soa agradável?"
Um aceno de cabeça
"Sim, ... como não..."
Bahia tem má memória
Na discoteca dos burgueses agora
Deus em pessoa o determina
Caetano impresso em microssulcros
Agradável!
Tomar batida de limão
Enrolar um cigarro
e acompanhá-lo em voz alta
com langor.
Venerar Veloso
é de bom-tom!
Agradável?
Dos silos da memória
Tiro minhas lembranças,
não as suas
Veloso jamais te agradou
Estranho, como tudo mudou
Ele não se amoldava
ao umbral
Dos preceitos falsamente virtuosos
Ao contrário, abusava do fumo
Era para vocês amoral
Faço um julgamento em base?
Torces a cara...
Não é mesmo agradável?

Matou-o de lento estertor
Tudo isso , senhores
Matou-o tudo que o agredia
Como zombarias por trás da geral
Do Cinema Olimpia
Matou-o sua moral tacanha
Queimando-o por dentro
nas entranhas
Vocês são amigos do charro
Como Veloso
e de panças repletas
comandaram o assassínio dos poetas
para depois citá-los



Poesia Sem Título (1978)

Pássaro negro
Corvo, por certo,
Solitário
Me olho de soslaio
Do muro do cemitério
Aí , eu olho pra ele
Fixo
Ela voa embora,
Mas volta.

I Need Something (1979)

Yes, I need something
I always need something
If it's a love
Or if it's a drink
Oh hell, i don't know
I just need something.

Eu preciso de alguma coisa
Eu sempre preciso de alguma coisa
Se é um amor
Ou se é um drink
Ó diabo, eu não sei
Só sei que preciso de alguma coisa

Tá faltando alguma coisa
Sempre tá faltando alguma coisa
Se é de mudança
Se é de esperança
Ó diabo, não sei
Só sei que tá faltando alguma coisa

Essa insatisfação que a gente sente
Ou solidão permanente
Tem que estar faltando alguma coisa.

Poesia Sem Título (1979)

Quero que venhas depressa
O tempo é pouco
Careço de partilhar meus delírios com você
Conheço lugares jamais penetrados
Misto de poeta e pirata
Só os loucos são capazes de voar
Não tenhas receio de mim
Quero Te levar aonde estou
Como poderei mentir-lhe
Se eu sou somente o que sou?

Poesia Sem Título (1979)

A casa de meu pai tem quatro quartos
A dupla que fez cada um de nós
Não gostaria de ver meu pai
Sem seu terno largo e folgado,
Nem mamãe sem seus velhos ditados
Seu mundo tão correto
Eu não me arvoro a mexer
Aquela sala de estar sempre arrumada, polida
E que nunca é usada
Não há nada pra trocar de lugar.
Daqui , bem longe de lá
onde faço meu lugar
Entro uma canção e um café expresso
Me falta a presença daquela gente
Meu velho conselheiro
Minha velha protetora
A falta de me entregar acriançado
Alegria de escutar a relíquia
De um disco antigo, mas inquebrável
O canto de ninar.
Quando volto para lá não levo roupas estranhas
Visto-me de filho
Traje especial do qual não me disfarço.



Treinando Compor

Não quero mais amor
Nem quero mais cantar minha terra
Me perco nesse mundo
Não quero mais o pau Brasil
As rosas que eu colho
Não são essas frementes na iluminação da manhã
São, se as colho, as dum jardim contrário
Nascido desses vossos
Na leiteira ou no bar a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
São quatro horas da tarde ou da manhã
Em algum mês que não me vem à cabeça
Tenho trinta e oito anos e uma angústia
Amo a vida que é cheia de crianças,
de flores e mulheres...
A vida. Esse direito de estar no mundo
Ter dois pés e duas mãos, uma cara
e a fome de tudo... a esperança
Esse direito de Kika e demais
que nenhum ato institucional
ou inconstitucional
Pode cassar ou legar.
Meus quantos amigos - gente presa
Quantos cárceres escuros
Onde a tarde fede a urina e terror
Existem muitas famílias sem rumo
Essa tarde nos subúrbios de ferro e gás
Brinca irremida a infância da falada
classe operária
Estou aqui!
O espelho não guardará a marca deste rosto
Se simplesmente saio do lugar
Ou se morro... se me matam...
Um dia eu parto
Que importa pois?
A luta comum me incendeia o sangue
E bato no peito
Como o coice de uma lembrança.



          QUERO IR
          Quero ir
          Quero pouca espera
          Quero ir pela primavera
          Quero ir
          Seu pensar já era
          Quero ir
          Quero, Quero, Quero,
          Quero, Quero, Quero,
          Quero, Quero ir.
          O sol daqui é pouco
          O ar é quase nada
          A rua não tem fim
          Eu volto pra Bahia
          Ou para Cachoeiro do Itapemerim.

 COMETA EXPRESS
          Já entrei vinte vezes no escritório do psicanalista
          Depois paguei o médico e depois fui ao dentista
          Pra ver o que eu tenho e não consigo dizer
          Perguntei a toda gente que passava na rua
          Ao patrão, à minha sogra, a São Jorge na lua
          Mas nenhuma dessa gente conseguiu me responder
          Por causa disso eu fui pra casa e fiquei pensando
          Se era eu que estava errado com as minhas maluquices
          Ou se era todo mundo que estava me enganando
          Arrumei a mala, deixei as perguntas na minha gaveta
          Procurei saber o horário do próximo cometa
          Me agarrei em sua cauda
          E fui morar n´outro planeta


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