Em tempos de preguiça coletiva e apatia, Ciberpajé vai no oposto disso tudo. Com uma arte profunda, crítica e reflexiva, ele nos apresenta um universo psicodélico e complexo em toda sua imersão criativa/subversiva. O álbum RENOVACENO, lançado pela Editora Merda na Mão, é um forte exemplo disso. As plataformas digitais aliadas a um processo de sabotagem do ensino (dentre outras questões) talvez sejam a raiz de toda a mediocridade espalhada e ploliferada pelos manipuladores da ordem vigente. Pensando em tudo isso e lendo essa entrevista que o mago dos quadrinhos underground nos enviou, revela ainda mais que somos inclassificáveis, insubmissos e nada adequáveis.
[PERGUNTA DE K.R.] Ciberpajé, você faz alusão ao sexo como uma conexão cósmica criadora de ideias e sentidos e culmina em personificar isso no nascimento de personagens específicos. Mas várias vezes você trata-o como um ato profano, como por exemplo na pagina 20 do álbum em quadrinhos Renovaceno. Eu fiquei pensando muito nisso no contexto da Aurora Pós-Humana, porque parece que mesmo nesse universo ficcional o sexo seria algo condenado por preceitos morais e reguladores, eu percebi isso quando você fala sobre o sexo como algo profano, e ao mesmo tempo desenha os atos de forma visceral. Porque você escolheu manter esse sentimento de algo proibido mesmo no seu universo ficcional?
CIBERPAJÉ: Essa é uma questão muito sagaz! A Aurora Pós-humana tem duas facetas, uma delas é a de "deslocamento conceitual" - conceito engendrado pelo autor de ficção científica P.K.Dick -, ou seja, uma FC na qual desloco o tempo para um futuro onde posso amplificar problemas do presente para tratá-los de forma mais veemente. Nas HQs em que uso esse princípio estou tratando de questões do agora, como o grande tabu que ainda envolve a sexualidade, embotando suas infinitas possibilidades e sua força, vemos isso sobretudo na ascensão desenfreada do monoteísmo neopentecostal e do Islamismo, as duas religiões que mais crescem no mundo ocidental e que infelizmente tratam o sexo do ponto de vista apenas reprodutivo demonstrando preconceitos graves com relação às expressões sexuais livres e libertadoras.
Então, em muitas narrativas minhas, parto desse ponto de vista, o de personagens que ainda vivem o sexo como um tabu. Refletindo sobre esse aspecto tão triste de nossa era e que causa tanto sofrimento e dor! Como por exemplo na HQ curta citada por você, Intransgenia. Se observarmos por trás do véu, estou tratando do preconceito sexual contemporâneo. Os personagens são dois seres de "espécies" (aqui representando ad ditas raças) diferentes, e para eles - segundo seus dogmas - é proibido amarem-se e, mais ainda, copularem! Isso remonta aos preconceitos de cor, raça, credo e gênero que criam impossibilidades das pessoas se relacionarem e se amarem, resultando em vilipêndios, assassinatos e violências de toda ordem. Por exemplo, em pleno século XXI ainda vemos inúmeros preconceitos relacionados aos casais chamados "multirraciais" ou "inter-raciais", insanidades pré-medievais emergentes. Estes termos são ridículos, não temos "raças", somos uma única espécie, a humana! Pois bem, na HQ Intrangenia os dois seres burlam tal REGRA de suas culturas, encontram-se e entregam-se ao sexo! Eles são, para suas culturas, o que podemos chamar de "rebeldes". Inclusive ao representar o ato simbolicamente - incluindo as idiossincrasias dos seres -, mostro uma penetração anal, ainda um tabu para os dogmas de nossa cultura.
E no final desta curta HQ, o resultado dessa cópula - que para eles era aparentemente profana - é o nascimento de um filho saudável e belo, quebrando a expectativa de que seriam pais de uma aberração. O final também é um elogio ao humano, essa espécie que ainda desconhece tanto seu potencial transcendente e suas origens. Então, o ato é profano para os personagens, mas é sagrado - nesse caso - para mim, e isso se expressa no resultado, o belo filho que nasce! Sempre trago o conceito de deslocamento conceitual para refletir sobre os nossos dilemas contemporâneos em múltiplas narrativas em quadrinhos, vídeos, performances, animações. Só nos 13 números da minha revista em quadrinhos Artlectos & Pós-humanos são mais de 400 páginas de HQs curtas contextualizadas na Aurora pós-humana, muitas tratando desses dilemas amplificados nesse futuro ficcional para serem explorados mais profundamente.
No entanto, a Aurora Pós-humana é também um universo mágico, no contexto do que se entende como magia do caos. Eu organizei-a para funcionar como um sistema mágicko para a realização de minhas ações de autotransmutação como magista e ocultista. Nesse caso estas ações geram narrativas em que o sexo aparece como algo sagrado, como um gerador de energias fabulosas, e um grande potencial de transmutação e transcendência. Resgatando e reconfigurando a Kundalini, aspectos essenciais do tantra e de outras tradições culturais.
Nas narrativas mágickas da Aurora Pós-humana o sexo é uma força cósmica sagrada e libertadora! No álbum Renovaceno eu dividi em tomos as HQs, e fui bem didático, pois nunca antes tinha separado as narrativas mágickas das de deslocamento conceitual! O tomo 3, chamado Transcendentes, inclui as HQs mágickas. Uma delas inclusive, a Infinada, trata de sensualidade e sexualidade e simboliza a força libertária e libertadora do sexo sem limitações, em suas pluralidades de gênero, e sexualidades trans e pós-humanistas. Te convido a seguir mergulhando em minhas criações transmídia para compreender com mais densidade a presença desses conceitos e contextos.
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Arte desse post: página da HQ Intransgenia, do álbum em quadrinhos Renovaceno, nova obra do Ciberpajé. Para adquirir seu exemplar do álbum envie um e-mail para a editora: editoramerdanamao@yahoo.com
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