(Por: Winter Bastos)
Glauco Mattoso é autor de milhares de sonetos (não se trata de hipérbole aqui, são milhares mesmo!), mas ainda assim tem gente que não o conhece. Também, se pensarmos bem, quem conhece poesia contemporânea, ou mesmo poesia em geral? Poucas pessoas. Constatando isso, que fazer? Ora, ler poemas. Para que ficar resmungando sobre a falta de leitores? A melhor forma de combatermos essa situação é abrirmos os livros e lermos.
Há escritores que reclamam de ser pouco lidos, mas eles próprios não leem quase nada. Cobram dos outros o que eles mesmo não fazem. Hipocrisia e comodismo: isso justamente é o que não encontramos em Glauco Mattoso. O cara mata a cobra e mostra o pau (opa!), pois não se tem registro de ninguém que tenha escrito mais sonetos do que ele na história da literatura. E o sujeito tem conhecimento literário que denota leitura pra caramba, além da vasta cultura musical.
O livro "A Letra da Ley", do qual trataremos aqui, é o quarto volume série "Mattosiana", publicada pela Dix Editora, e divide-se em duas partes: "A Lei de Murphy Segundo Mattoso" e "História do Rock Segundo Mattoso". A primeira metade da obra trata da folclórica lei segundo a qual tudo que puder acontecer de errado, vai acontecer. É a tal da "lei de Murphy", a que diz que o pão sempre cai com o lado da manteiga virado para baixo, e que nunca chove quando a gente leva o guarda-chuva conosco. São sonetos temáticos em cima desse tipo de chateação, que chega a graus bem elevados em alguns dos poemas (sempre com métrica rigorosa e nenhum pudor quanto a vocabulário ou assunto). Vai aí um exemplo:
SONETO PARA UM INTESTINO INTEMPESTIVO
Está na lei de Murphy: a caganeira
vem sempre inoportuna em seu momento.
Eu passo uma manhã, folgado, inteira
em casa, e nada, nem sequer um vento...
Sabendo que a vontade é costumeira,
às vezes eu me sento e cagar tento.
Ao reto facilito, caso queira
sair, bem grosso e sólido, o excremento...
Supositórios ponho, esforços faço,
mas canso de esperar, se o tempo passo
pensando que, hoje à tarde, há agenda urgente...
Nem bem à rua saio, e os sinais sinto
num ônibus, na fila, ou num recinto
em cujo sanitário ouço: "Tem gente!"...
(A Letra da Ley, de Glauco Mattoso, pág. 29)
A segunda parte do livro é composta por sonetos sobre rock. E nela pulula uma imensa variedade de bandas e artistas, sobre os quais Glauco tece suas apreciações. Às vezes elogia, noutras idolatra, noutras esculhacha ou reduz a pó nomes consagrados ou não. Mattoso caga e anda para o que outros vão pensar. Ele diz o que pensa e pronto, sem medo de desagradar fãs dos medalhões do rock, ou causar estranhamento ao aplaudir nomes menos conhecidos. Segue um poema feito por G.M. em homenagem a uma banda que sempre gravou por selos independentes e nunca se rendeu aos ditames do mercado fonográfico.
SONETO PARA O GRUPO DEAD KENNEDYS
O punk americano nunca havia,
de fato, sido forte concorrente
do inglês, fora os Ramones. De repente,
irrompe um cara doido e uma mania.
O Jello é bem político: queria
falar de atrocidades, do emergente
perigo nuclear e deixa a gente
temendo que o Camboja impere um dia.
Crinaças, velhos, pobres, todos cujo
conceito nos sugere desamparo,
inspiram-lhe o refrão: "Deles não fujo!"
O som, quase tão rápido, o comparo
ao ritmo dos Toy Dolls, porém mais sujo,
mais feio, mais fedido e menos claro...
(Página 120)
Sobre as bandas Ramones e Toy Dolls, aliás, Mattoso também fez sonetos. Da mesma forma, vamos encontrar outros sobre The Clash, Sex Pistols, The Cramps, New York Dolls, The Who e por aí vai. Além de curtir os poemas, a gente se sente instigado a conhecer as músicas dessa turma toda. E, fatalmente, o leitor vai se deparar com nomes do universo roqueiro que nunca ouviu antes. Ouçamos agora, então. E leiamos Glauco Mattoso: o cara já escreveu o suficiente para preencher muitas de nossas horas com arte e rebeldia, fora das caretices do cotidiano enfadonho que nos sufoca.
* Retirado do blog
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