domingo, 14 de abril de 2019

FAÇA POESIA MENINA DAS COISAS INSIGNIFICANTES -

Por: Clécia Sant'Ana

O que diria para a minha menina se acaso pudesse ter um encontro da física quântica possível, da máquina do tempo onde eu fosse a mulher do meu futuro, ou tivesse o colar Vira Tempus, ou mesma fosse portadora da cabaça dos segredos enviada pelas três irmãs pássaras as quais não se pode falar o nome.

Brincaria comigo no parque, na “roda dos desvalidos”, onde muitas mães “abandonavam” suas crianças, eu também via como a roda gira-gira carrossel, diria; roda criança, brinque descomunalmente, não tenha pressa, seja ligeireza infante na doce lentidão da tarde, seja um jabuti que na curteza dos passos corre léguas tiranas.
Suba na gangorra e dê o mais alto gargalhar nas alturas, com uma mistura de medo e fantasia, de descobrir o céu no impulso dos ares e de aterrizar seus pequenos pés paralelos ao equilíbrio de segurar seu peso na gangorra, e de fazer leve deboche em segurar o colega por mais tempo no ar ao outro extremo dos sorrisos de liberdade.
Se banhe na água da bica, seja e viva o fundo do quintal, conte formigas, faça bolinhos de barro, caminhe sobre o muro sendo bem clandestina aos olhos de sua mãe. Construa casinhas de lençol e também de palhoça, monte boizinhos de maxixe, de manga e faça também a boneca de milho sua boneca.
Seja leveza menina, não queira crescer tão rápido, viva pausadamente, tome bastante chá de capim cidreira, menta e hortelã. Acalme-se deitada na galha da goiabeira, no equilíbrio das folhas e das ambivalências, seja você uma passarinha, cante e cante e cante, assovie, assopre notas musicais que te façam coruja, ou uma paloma branca de olhos vermelhos ou uma canarinha. Seja alegre menina … pouso poesia no ombro, se banhe no sol e chuva casamento da viúva, se banhe com chuva e sol casamento do girassol. Faça flautas de talo de mamoeiro, roube o sabão em pó de sua vó, e seja bolhas gigantes cristalinas com reflexos de arco-íris. Voe dentro da bolha e chegue até as nuvens. Olhe pro céu e procure satélites e saiba diferenciar as estrelas, seja constelação, sinta-se e seja uma das três marias reluzentes na ponta do rabo do escorpião, se oriente pela constelação do cruzeiro do sul, seja um barco a vela na imensidão do azul escuro da noite e também do azul claro do dia. 

Seja uma das marinheiras na carroça do padeiro que:
- compra pão sem dinheiro numa perna só e o outro rabicó…
    - o quê que você veio fazer na nossa linda terra de ouro?
- muitas coisas!
    - faça um pouquinho nóis vê?!
- Com grande prazer!

Se eu pudesse ter um encontro do acaso...eu não diria nada disso pra minha alegre menina, pois ela viveu e foi muito menina na sua meninice, aproveitou cada verbo no infinitivo, foi desbravadora de cupinzeiros, e subia no topo e como Indalécia gritou a terra cantada de seus pastos cheios de palmeiras de babaçu e árvores de baru, aproveitou cada palavra nova, cada caligrafia, cada história ouvida e contada, cada passo de dança ensinado/aprendido, cada música ouvida. Viu o algodão ser cardado, viu a linha na roca, viu a linha no novelo, viu a linha no tear, fez crochê, teceu tapetinhos de tiras, ajudou a vó limpar tripa de porco e ajudou a fazer linguiça, ajudou a fazer geleia de mocotó, ajudou a bater roupa no batedor de madeira, ajudou a virar a terra com a enxada e fazer covas rasas para plantar batata-doce, amendoim, milho e mandioca.
Em 1989 foi acordada de madrugada pelo pai, que a fez ver o cometa Halley … e o pai dizia que só daqui 100 anos ele viria novamente. O que na verdade descobriu que passaria novamente aproximadamente de 74 a 79 anos.
A alegre menina já dizia no olhar de suas alegrias, e era cajuzinho do cerrado colhido bem no alto, era araticum de casca grossa parecendo pedra desabrochando e um gosto forte onde só os fortes de sensações e emoções se apegavam ao sabor, a textura quase arenosa no paladar que envolvia mistérios de profundidades e sutilezas do caroço marrom, polpa boa de fazer picolé. Era ela Araçá Una de olhos arregalados, grandes também e negros como jaboticaba. Era ela pele de jambo, perfume de flor roxinha de lobeira. Tinha às vezes hálito de jatobá pregado no céu da boca. Ela também havia descoberto que a boca também tinha céu.
O que dizer a mim mesma no encontro, no inusitado tempo do existir menina alegre que fui?
Eu pediria conselhos para a alegre menina e eu menina diria a mim mesma, menina-mulher, seja alegre menina, seja leve menina, seja sincera contigo menina, “levante-se da mesa quando o amor não estiver mais servido”, ame-se em grandes colheradas do seu doce prazer, saiba que quando estiver necessitada sempre haverá uma mão estendida pois você é amada, e na alegria terás braços porque és admirada. Treine sua paciência que você aprendeu com os calangos e lagartixas, seja aranha tecendo sua teia, domine sua ansiedade, seja amiga do TEMPO, sente-se com ele na beira da estrada, ou num tronco de árvore caída, teça sua teia menina com o novelo transparente do fio da vida, dê o braço a torcer principalmente no amor, não queira ser só razão, aja também pela emoção, não tem pecado, não existe pecado, isso tudo é inventado, seja guardiã de sua caverna e não esqueça sua criança la dentro, caminhe de mãos dadas com ela por todos os matos, montanhas e cantos, desça ladeiras dentro do tambor, estude os estudos formais, e os estudos das coisas inventadas, saiba ouvir e falar, partilhe seus sentimentos, aprenda que segurança é um estado de espírito, seja um espírito seguro de si. Para conseguir o que quer terá que dar o primeiro passo, deixe de ser medrosa menina-mulher. Use sua força para sempre conquistar e nunca para agredir. Seja a recompensa do não julgamento para assim não ser julgada também. Assuma a responsabilidade pela sua vida, lembra que você aprendeu com a formiga. E lembre-se que cantar você aprendeu com la Mercedes como la cigarra em serenata para la tierra de uno…tantas veces me mataron, tantas veces me morí, sin embargo estoy aqui resucitando. Gracias doy a la desgracia y a la mano com puñal/Porque me mató tan mal y segui cantando/Cantando al sol como la cigarra/Después de un año bajo la tierra/Igual que sobreviviente que vuelve de la guerra/Tantas veces me barraron/Tantas desapareci/A mi próprio entierro fui sola y llorando/Hice un nudo del pañuelo pero me olvidé despúes/Que no era la única vez/Y segui cantando/...Tantas veces te mataron/ Tantas resucitarás/Cuántas noches pasarás desesperando/Y a la hora del naufragio y a la de la oscuridad/Alguien te rescatará/Para ir cantando/Cantando al sol como la cigarra/ Después de un anõ bajo la tierra/Igual que sobrevivente/ Que vuelve de la guerra...
Saiba que você é o que come, o que acredita é sua alma, seja escandalosa como o sol, sua vida é o que fazerá dela, não alimente a dor, amor não é dor, sua mente é o que pensas, lembre-se que tudo tem reparos. Seja água correndo na serra…
Como te explico?!!! 
Seja mar atlântica, mundana, santa, um montão de coisas! Seja pão que alimenta a fome. Quando se sentir sozinha chore e coloque tudo pra fora como a primavera, abra fendas para o nascimento de coisas novas, jogue o que te machuca fora. Não vais querer que algo morra por dentro. E o mais importante...fale olhando nos olhos, deixe as palavras pertubarem os sentidos das coisas normais, para que elas não sejam tão normais. Saiba que o conhecimento está no apalpar, no pegar, no tocar, está no ouvir para além dos sentidos. Saiba que tudo muda, e que podes encostar na tarde como se ela fosse um barranco. Viva não só das palavras, mas também dos olhos...eles também falam, mais que a boca. Ah e também as mãos...essas sussurram poeminhas de acalanto.
Fale de esperanças, fale de viagens e andanças, fale de portas abertas, fale de alcances, de coisas que te aliviem um pouco mais. Fale de lutas e nunca de esmorecer. Faça uma orquestra de grilos, e saiba que a vida é uma canção que carrega a lua no bolso. Fale de pequeninas coisas, finja não conhecer o que você já sabe, faça poesia das coisas insignificantes.

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* Clécia Sant'Ana é atriz, poetisa e cantora



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