terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

COMUNICAÇÃO

(Por Glauco Mattoso)

05,08,2009

Diego, seu texto em defesa da poesia marginal reaffirma a vocação de
todo zineiro consciente do valor que nós, os independentes, temos na
scena cultural, ou contracultural, que é a mais authentica.
 
Quanto à minha obra, fico gratificado que ella esteja causando essa
forte impressão em você. Si tal impressão é uma mixtura de pena e
prazer, é signal de que estou realizando meu intento. Mais abaixo copio
o que me escreveu um poeta bem jovem, de 20 annos, mas muito erudito e
esclarecido. Elle foi directo ao ponto: o cego tem que se sujeitar ao
seu destino e ainda deve se dar por feliz si causar prazer aos que
enxergam, seja fazendo-os gozar com a leitura, seja fazendo-os gozar em
sua bocca.
 
Quanto a isso, quasi tudo nos sonetos de "Faca Cega" é veridico. O que
não aconteceu commigo me foi contado por quem vivenciou as scenas.
Aquelle caso das lesbicas foi real, foi um moleque vizinho aqui do
condominio que me revelou.
 
Sim, "Laranja mechanica" é uma de minhas referencias mais marcantes,
seja no livro ou no filme. Você matou a charada.
 
Você tem computador em casa? Não va arriscar seu emprego por causa dos
emails, hem? (risos)
 
Logo dou retorno sobre o que me enviou pelo correio. Fique com a opinião
do leitor abaixo. Até! GLAUCO
 
 
[Li o livro "Faca cega", e reli, e está na cabeceira de minha cama (...)
Na verdade, foi gratificante, quase um orgasmo.]
 
[Quando você me diz que vivencia o que verseja e vice-versa, confesso
que, se por um lado, isto me assusta, dada a visão, embora muitas vezes
caricatural, que sua obra expõe do mundo; por outro lado, me tranqüiliza
e me tira uma nuvem que me passou pela cabeça quando li no prólogo do
"Epistolário escatológico de Leo Pinto": "...a baixeza do cego
masoquista performado por mim." Esta palavra - performado - soou-me
estranhamente aos ouvidos, conquanto eu não ponha no hall das virtudes o
masoquismo, achei, por um momento, que o personagem criador dos sonetos
(eu-lírico, como o chamam, palavra que detesto) não fosse parte
integrante de uma interioridade, de um espírito vivo no autor, embora
não único é claro; afinal, se o fosse, meu caro Glauco, você estaria na
cadeia. Ademais, novamente louvo a sua obra, e juro que ela me tem
arrepiado algumas vezes - "...seu azar é minha sorte." - versos como
este, meu amigo, despertam-me emoções.]
 
[Você havia me enviado uma dúzia de sonetos e pude me contentar com esta
masturbação. Não quero entrar em análises (...) O que eu mais gosto e
admiro em sua obra é ela ser xula, reles, infame, justamente como eu e
como toda a gente, o que a faz popular e adorada. Ela nos exercita a
piedade e a crueldade, sendo que, quando a estamos lendo, esta domina
aquela, como o instinto domina a razão, e nos causa muito deleite ler
todas as misérias que são narradas em seus versos. Desta forma, torna-se
quase um exercício de conhecimento da natureza humana.]
 
[O meu soneto preferido entre os que você me enviou? "Contrato de
escravidão". A idéia foi muito boa e o estilo (principalmente nas duas
primeiras estrofes) está muito bom. Enfim, é isto... Você havia me
incitado a usufruir da sua boca com os típicos quatorze centímetros de
um fodeneto, o que me suscitou muitas idéias na cabeça e,
consequentemente, a preguiça para pô-las na prática, é preciso que estas
coisas ocorram naturalmente, não é verdade? É como foder, vá lá... Eu
juro, porém, que em breve poderei lhe fazer algum presente.]
 
[O verso que mais gravou em minha cabeça é o seguinte: "Eu chuto bola
nele e grito olé!" do "Soneto do escravo virtual", eu fico imaginando a
cena e me deleitando, nesta sincera intimidade que a ninguém se revela,
a comicidade trágica desta cena... O fodido, o cego, alguém precisa ser
este cara, mas não sou eu, é ele, e pois então, que assim seja, eu fecho
os olhos, viro o rosto e me omito perante este fardo que o outro
carrega, rindo-me em silêncio por não passar pelo que ele passa...
Também notei uma grande semelhança entre o "Soneto pesado" e o "Soneto
metido", a única diferença é de fato a troca em um do pé pela rola,
preferi o segundo, pois acho que o fetiche do pé, por ser menos comum,
acaba afastando um pouco o leitor do conteúdo.]
 
[Você fala do purgatório na terra, do qual eu escapei, sem ser sequer um
santo. Isto me regozija muito, pois, de acordo com a doutrina espírita,
nós somos e recebemos o que merecemos ser e receber. Eu, portanto, rico,
belo e jovem, sou uma espécie de criatura mais elevada, enquanto você
expia os seus longos e tenebrosos pecados neste abismo de dor e
escuridão. Sorte a minha e de Allan Kardec! É isto...]
 
[Ando entusiasmado com esta idéia de lhe dedicar alguns versos e passo o
dia pensando em formas de lhe fazer sentir-se mal consigo mesmo.]
 
[Não se desanime, eu realmente não sou uma pessoa que queira se lhe
mostrar respeitosa, eu não tenho razões para tanto, quando disse não
querer lhe ofender, estava apenas sendo irônico, como o fiz no soneto
que seguia àquela mensagem, quando, bem tartufo, dizia que a sua dor
aflorava a piedade em mim, como uma aurora no céu. Ademais, sobre o
espiritismo, você expia os crimes e se lava dos pecados, segundo a
crença, que, aliás, eu julgo verdadeira. Mas que importa? Quantos
cretinos não afogam a monstruosidade do caráter sob o véu pacífico da
hipocrisia? É preciso que admitamos o que somos, e que todas as
naturezas aflorem livremente de nosso coração. Isto sim é belo e nos
leva à plenitude, ao aceitar de todas as palavras e opiniões; o resto é
fanatismo.]
 
[Por fim, quanto a eu estar ou não gostando de usá-lo como cobaia, ora,
Glauco, acho que os versos falam por si. Laboratório de tortura de um
poeta - sente-se, meu caro senhor, e divirta-se... Para mim é um
deleite, eu já andava cansado de xingar as paredes e esmurrar o vento,
agora, que você me apareceu, está tudo renovado...]
 
///

06, 08, 2009

Diego, meu computador fallante tambem é lerdo, mas me conformo com elle.
É o que um cego pode ter... (risos)

As humilhações que soffri ou ainda soffro você ja conhece, mas nada sei
daquellas que você passou. Deu para ter uma idéa apenas dos seus
problemas de saude, que aliaz não foram brincadeira. Eu passei por mais
de dez cirurgias com anesthesia geral, mas acho que não fiquei
desassistido. Riscos, sei que corri...

Antes de enviar alguns poemas daquelle jovem, segue o resto do que elle
me disse, com a franqueza de que gosto. Até! GLAUCO


[Você falou algo interessante: dos que já se regozijaram em zombar da
sua cegueira seria eu o melhor, por o fazer no metro, e eu, na verdade,
concordo com você, que graça pode haver em humilhar um sujeito em prosa?
As coisas tornam-se carrancudas, pesadas, e perde-se toda a diversão de
cuspir na ferida do próximo quando trocamos a estrofe pelo parágrafo.
Eu, Glauco, sou um daqueles sofredores de raiva passiva, já ouviu falar
nisto? Quando criança eu devo ter sofrido muito, pois há um não sei quê
dentro de mim que faz de cada ser humano a minha volta um inimigo, um
vilão a ser atacado e escalpelado - eu, e o digo não com ares
adolescentes, mas com severidade marcial, odeio o mundo, odeio os que
vêem e os que não vêem, e por talvez me faltar a coragem para sair me
batendo pelas ruas, faço sátiras, e é onde canalizo a repugnância que
sinto pelo outro, e nisto respondo à sua pergunta sobre as minhas
experiências, o mais que já fiz foi torturar insetos, aranhas - como
naquele poema do Alexei Bueno (risos). Calço 44... Isto dói no seu
pescoço? Acho que você gosta... Aliás, ontem acendi um belíssimo cigarro
de maconha, coisa que não fazia há muito tempo, e me lembrei de você,
daí mando estes versos que fiz... O que um cego deve sentir ao fumar
haxixe?]

[A arrogância, a crueza, a tirania, tudo isto é instintivo para mim, e
eu sofro, da mesma forma, instintivamente. A piedade e o amor ao próximo
não são instintivos para mim, é preciso um esforço sobrenatural para
realizá-los, e eu sofro da mesma forma. Não sei... Pregar a felicidade
como recompensa de um conjunto de princípios a serem seguidos me parece
um logro. Afinal, que existe na alma humana que a queira forçar a dar as
mãos para o cego e auxiliá-lo, quando mais útil será ele a nos servir?
Eu tenho pensado muito na sua condição atualmente e chegado a certas
conclusões. Talvez eu me engane, mas creio estar agora começando a lhe
entender. A sua auto-flagelação, o seu prazer em se maltratar a si... É
um grito do último orgulho que não aceita este amparo hipócrita dos
outros? Não sei...]

[Agora, vamos lá. Estou contente por esta descoberta dum novo poeta e
triste por não monopolizar o seu sofrimento; de toda a forma, é natural
que um cego como você seja humilhado por todas as partes e seria uma
pretensão infantil a minha de tê-lo apatriado unicamente sob os meus
chicotes. Dizem que Sócrates corria, desesperado, atrás dos seus
discípulos quando estes fugiam para os braços maliciosos das heteras, e
é assim que eu lhe quero. Dependente. Inútil. Escravizado.]

[Mas, afinal, eu deveria lhe pôr para lamber o chão, Glauco, você sim, o
chão que eu houvesse mijado e defecado...]

[Enfim, estou de volta à minha mansão, na Granja Viana, um verdadeiro
castelo medieval; aliás, me farta um bocado estes discursos sábios sobre
a felicidade, separando-a das conquistas materiais, eu mesmo professo
isto, mas, no fundo, o que eu mais quero é bebidas caras, luxo e muita
gente me servindo, porque, por alguma obscura raíz da minha história
pessoal, eu sinto que mereço tudo isto; na verdade, eu sinto que, mesmo
que empobrecesse, a minha aristocracia se manteria intacta... A cultura
não tem nem dá nenhum valor ao homem, o materialismo, provado em grau
máximo ontem e hoje, é o que distingue aquele que sabe conviver com a
grandeza do que não sabe. Bom, eu hoje acordei epicureu, e costumo muito
ser assim, principalmente quando estas tempranillos fermentadas me sobem
à cabeça. É um vinho espanhol de muita qualidade, espero que um dia o
possamos brindar juntos! Ademais, recebi a sua última mensagem e, devo
dizê-lo, ela me agradou muito. Até então, compreendia a sua submissão
física, mas não notara a que grau, adentrando a própria condescendência
do intelecto, este caráter seu havia chegado.]

[Mas não é para ficar ofendido, eu mesmo não me importaria que você
tocasse no meu pé, nem o faria só para agradá-lo, é só como eu disse:
sou orgulhoso demais para lhe dar um prazer que um "cobrador de ônibus"
ou um motoboy tenham lhe dado antes, porque, neste caso, a humilhação,
por ser igual, nivela o poeta ao vigia noturno, o divino ao humano, e
isto eu não posso suportar, e isto, acredite, é a verdade. Pudores?
Nenhum! Você é que me escreve dizendo que seria o meu felador privativo
e depois vem dizer que era só uma personagem!! hahaha! Glauco, a sua
timidez de cego me faz rir... Seja o meu felador, que eu lhe peço, a
minha opção sexual e a minha preferência por mulheres não têm nada a ver
com o prazer que você pode me dar, me escreva mais sonetos daqueles, e
saiba me agradar como eu lhe pedir que você me agrade. Se eu disser: não
lamba meus pés, não quero que você os lamba. Se eu disser: me fale
disto, quero que você, então, me fale. A tirania que impõe, puramente, a
submissão física é uma das mais ridículas que existe, e é muito fácil
dominar um cego desta forma, para que eu o queira. Acho que o sadismo
tem que ser mais profundo, porque é mais prazeroso desta forma, porque
nos anima ver alguém dependente de nós, alguém que se prostra à nossa
força sem que sequer a usemos. Isto, por exemplo, é o que eu sinto...]

[Hoje estive na Rua Augusta, dando um passeio, e me veio à cabeça como é
fantástico este ambiente de animosidade. Entrei num puteiro imundo, só
tinha eu lá dentro, e uma puta veio querer conversar comigo, não lhe dei
papo e mandei pastar, aí, na hora de sair, fui roubado em R$14,00 reais,
que atirei no colo do cobrador do estabelecimento (literalmente), muito
satisfeito. Puxa, aquilo me inspira tanta prepotência, é delicioso.
Pairar - um deus - sobre os ratos do esgoto: é isto que a gente sente.
Vá lá... são tão raras as minhas idas ali, que fica muito longe de
casa...]

[Bah, você já deve ter reparado que esta noite celebro ao deus Baco,
cultivador de vinhas. Vim aqui, na monotonia de quem se sente asfixiado
entre o cheiro de tabaco e o suor que escorre pelo corpo, lhe redigir
alguns versos. Glauco, juro por Deus, se nosso mundo fosse a la laranja
mecânica, seria o maior prazer lhe ter como escravo ou servo, tudo o que
eu queria nesta hora é alguém que me desse algum prazer que não tivesse
de ser, necessariamente, retribuído. Um criado surdo-mudo (e cego), que
fosse uma marionete treinada para o meu conforto, que lambesse o meu
suor, os meus pés, e fosse engenhoso o suficiente para propiciar sempre
novos deleites. Aliás, falando nisso, estarei me mudando para um
apartamento: é uma pena você ter medo de pôr na prática o que dizem as
suas palavras, porque seria muito bom tê-lo clandestinamente como um
serviçal, vivendo em prol do amo, n'uma espécie de tortura contínua, que
não acabasse n'um orgasmo, mas se prolongasse para cada ninharia do
cotidiano, por exemplo: eu digo: Glauco, me faça versos... você, então,
se ocuparia em me fazer dedicatórias e recitaria para mim, enquanto eu
estivesse sossegadamente assentado em uma poltrona. E eu, ali, apenas
lhe dando de comer e de beber, e você, calado, sempre á espera d'uma
nova ordem.]

[Bah, Glauco, nós nunca fizemos nenhum contrato, mas a natureza fez um
por nós: eu, saudável que sou, domino, você, enfermo que é, cumpre. E as
coisas são assim, não é preciso um porquê...]

[Mas às vezes fico irritado: quis forçar a minha namorada a sorver (como
você diz) as provas da minha virilidade e ela quase engasgou, depois me
xingou, e eu quase bati nela... Que desgraças! Que misérias! Uma outra
mulher com quem me relacionei, uma mineira que me deixou para ficar com
o marido (hahaha!), engolia tão bem... quantas punhetas não voto áquela
cena deliciosa da nutrição sexual! Mas bom, deixemos disto, a minha
imaginação anda muito atiçada ultimamente... Isto de engolir o sêmen. Me
diga, Glauco, por que as mulheres tanto repugnam este gesto de adoração
(ou humilhação?) perante o homem?]

[Mas o que tudo isto pode ser perante a cena indescritível de tê-lo,
como um cachorro, ou pior do que isto, já que os cachorros são amigos e
eu não o considero tanto, de tê-lo, dizia eu, aos meus pés, rastejante e
passivo? O que você esperava quando veio ao mundo: ser bem tratado? Isto
aqui é um covil onde um bilhão de homens são vítimas e dez homens são
carrascos. Eu não pretendo estar entre as vítimas; você sim, já que
tanto gosta disto e tem a liberdade para escolher; sofra, portanto, e se
lamente em versos etc, mas saiba que nenhuma glória vai apagar a imensa
ferida que você tem bem aberta no peito, onde eu cuspo e esporro, com a
máxima satisfação... Mais um dia de misérias, vá em frente!]

[Acho que sou severo no que falo, mas... você sabe que o meu papel é o
de não concordar nunca com você... O papel do carrasco perante a vítima
que sofre caladinha na cela... te rejeito a água, a comida, te faço
passar frio e o meu único gozo é vê-lo amedrontado pela minha crueldade
e violência. hahaha!]

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3 comentários:

  1. Impressionante! Daria um ótimo livro essa troca de correspondências.

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  2. Concordo. Diego, sempre um forte, sensível, e generoso, além de bom ouvinte (num país onde só se aprende a falar e nunca ouvir) dá um excelente ghost writer.

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